sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Entre o Muro e a Imaginação

Tudo seria mais fácil se eu me interessasse por menos coisas, se eu tivesse um gosto limitado a gêneros específicos. Isso vale para a música, para o cinema e para a literatura. Estou sempre aberto a dar uma chance ao que escuto, ao que vejo e leio. A consequência disso é que gosto das fantasias de Rowling e da Cor da Magia de Terry Pratchettt tanto quanto gosto da desconstrução bíblica de Caim e das inverossímeis Intermitências da Morte. Amo a ficção histórica de Susanna Clarke e venero o ego implodido de Arturo Bandini em seu caminho a Los Angeles; as memórias biográficas de Hitch-22 me fascinam não menos que a detalhada biografia do Universo, de John Gribbin. Quem primeiro me fez chorar diante do papel foi o Casmurro de Machado, o último foi o sonhador Dominic Molise, no inverno mais frio de John Fante.





Quando entro numa livraria, a sensação é desesperadora. Toda e qualquer seção tem pelo menos cinco livros que eu gostaria de ler. Quando saio sem comprar nenhum, sinto que ignorei uma grande parcela de conhecimento imprescindível. Quando saio tendo comprado alguns, trago-os pra casa e eles têm de entrar imediatamente na fila de livros a serem lidos, posicionados sobre as pilhas que já acumulo há anos por falta de uma estante grande em que eu possa guardar todos devidamente. A quantidade que consigo ler por mês é menor do que a quantidade que adquiro nesse mesmo tempo. Seria uma compulsão saudável se o ano inteiro fosse feito de férias. Agravante da falta de tempo para ler é a minha necessidade de dedicar um tempo diário para a escrita, seja acadêmica ou ficcional. Contudo, recentemente, escrevendo um conto chamado Alfred e a Estante, descobri que o desespero que sinto ao entrar numa grande livraria diz respeito não à quantidade exorbitante de livros que ainda devo ler, mas à aparente ausência de vazios. Parece já existir ali tudo o que precisaria ser dito, além de réplicas e tréplicas dos milhares de livros que dialogam com o conteúdo anteriormente lido por seus autores. Com um pouco de suspensão do ego, qualquer um pode acabar acreditando que não há lacuna nas estantes. O vazio, porém, é onde a mente opera, uma ausência na estante é o que ventila a reflexão.


Jorge Luis Borges
Ao pisar numa Livraria Cultura como a do Conjunto Nacional, em São Paulo, rodeia a minha cabeça a mesma sensação angustiante que A Biblioteca de Babel de Borges me proporcionou. Avisto cada seção de estantes e imagino um mundo incongruente de argumentos distintos, regidos por individualidades autorais conflituosas. Uma multidão de músicos a tocarem partituras diferentes.
A sinfonia desorquestrada de dizeres pode enlouquecer quando inocentemente se imagina haver um meio de ouvir a todos, de ordená-los na memória e conduzi-los com a batuta que é o lápis. Pois é com ele que se harmoniza a gritaria das estantes, com ele que se esquece do vertiginoso infinito de vozes.
Muitos dão conta das duas tarefas, a de reger e a de compor dizeres. São os chamados polímatas; indivíduos que estudam ou que conhecem muitas ciências. Umberto Eco, em um debate com a escritora Susan Sontag, assumiu que essa era a sua maior ambição, tornar-se um polímata. É evidente que ele parece chegar muito próximo disso, assim como o próprio Borges.

Umberto Eco entre parte de sua coleção de mais de 50 mil livros
Borges, porém, venerava o conceito de infinito e via a poesia como mantenedora de uma distância fundamental entre os saberes concretos e os saberes da palavra imaginada pela arte. Contrário a isso, um polímata só é pleno em seus anseios ao entender o saber como finito, abarcável. A palavra polymathia teria sido usada por Heráclito para criticar a natureza superficial de se abraçar mais do que se pode alcançar. Semelhante foi a resposta de Sontag naquele debate com Eco: ela o lembrou que o polímata é quem se interessa por tudo e por nada mais. Um apaixonado pelas paisagens, cego por tudo que tenta enxergar ao mesmo tempo.

Esse nada mais é, para mim, o que me permite a inocência de compor longe da gritaria. É um vazio na estante, abrindo espaço para os sopros que precisam correr daqui pra lá.
Quando a estante está completa, o homem está preso nela.
Inspirado nisso, nasceu Alfred e a Estante. É um conto longo para o blog (pouco mais de 4 mil palavras), e por isso trago aqui apenas uma parte, que espero servir para despertar o desejo de continuarem a leitura:

__________________________

Olho, de M. C. Escher

Alfred e a Estante


Por muito tempo eu sonhei com uma estante grande o suficiente para guardar todos os livros que adquiri ao longo de mais de vinte anos de leitura e pesquisas acadêmicas. No auge da minha compulsão, quando havia tempo de sobra, eu costumava ler um livro a cada dois dias. Grande parte dessa leitura se deve ao fato de que cursei Letras. Conquistei meu mestrado há um ano e agora estou desenvolvendo um projeto de doutorado centrado nas formas de representação do infinito. A ideia é colher respostas em Murakami e Kafka, tirando proveito também de análises sobre algumas imagens de Escher – o que minha orientadora acredita ser impossível conciliar com análises literárias. A pesquisa parte da hipótese de que o infinito é uma invenção humana, um atalho inconclusivo figurado pelo cérebro para findar a sua incapacidade de compreender grandes e ínfimas extensões temporais e espaciais. Eu poderia divagar sobre o que venho pensando para essa tese, afinal, como todo pesquisador, tenho um vício incurável por falar e falar sem chegar logo ao que quero dizer, então ficarei calado quanto a isso. Resolvi escrever-lhe por razões mais importantes. E, para ser sincero, o que farei ou não sobre a hipótese da tese… nem eu ainda sei dizer direito. A ideia nasceu de um instante imaginativo há alguns anos, quando li Sono, um conto de Murakami, e me senti orbitando uma única imagem durante toda a leitura. O conflito da personagem que torna-se permanentemente incapaz de dormir fez-me lembrar da gravura intitulada “Olho”, de Escher. Dali ao fim da leitura, não consegui mais deixar de ver aquele olho em cada palavra. Desde então, sempre ao ler as palavras do escritor japonês, lembro-me de outras gravuras de Escher. O fato é que precisei contar isso tudo por causa da minha nova estante. Com ela ocupei uma parede inteira do meu escritório, de modo que o transformei na minha biblioteca particular, cuja única parede livre, em frente à estante, adornei com uma enorme tela do Olho de Escher.
Antes dessa estante, eu poderia olhar para qualquer direção e encontrar pilhas de livros espalhados por toda a casa, dentro da sapateira, debaixo da cama, ocupando gavetas e disputando a tarefa de decoração com objetos da sala – pois em um canto eu empilhara uns tantos livros de tal modo que, atingindo sinuosas alturas, pareciam três estalagmites de papel criadas pela artista espanhola Alicia Martin em um de seus dias mais sóbrios. Pela casa eu imaginava ter uma soma aproximada de mais de mil livros. Quando precisei saber a medida das prateleiras, contei um por um e descobri serem quatrocentos e dezessete. Para ordená-los, separei-os por tema, pois percebi que se os arrumasse por ordem alfabética de autores forçaria parcerias no mínimo irônicas. Não me pareceu correto misturar línguas distintas, nem colocar Murakami ao lado de Maomé. Como em qualquer biblioteca, utilizei uma prateleira para dispor apenas livros de religião, outras para ciência, literatura e assim por diante.
Na noite em que guardei todos os livros, sentei-me orgulhoso no sofá diante da estante e dediquei uma taça de vinho à ordem que eu finalmente conseguira dar a tudo. Ainda estava fresca na memória a disposição de cada uma das prateleiras quando, no dia seguinte, voltei à biblioteca para admirar os livros e dei-me conta de um vazio na terceira prateleira, de baixo para cima, ao centro da estante, onde eu havia enfileirado apenas os livros que eu ainda não lera. Eu tinha plena certeza de que não restara nenhum espaço ali na noite anterior, muito menos uma lacuna de três ou quatro centímetros que agora separava O Muro de A Imaginação, este último pendendo para a esquerda, apoiado no outro. Não me lembrava de ter retirado nenhum dali para uma leitura antes de dormir, mas mesmo assim comecei a procurá-lo. Nada havia dentro das caixas que eu usara para transportá-los, nem em meu quarto, ou no banheiro, tampouco na sapateira ou debaixo da cama. Fui inspecionar também o andar debaixo, embora eu não tivesse descido depois que fui buscar o vinho. Nada na sala e na cozinha.
Estava faminto, então tive de parar e dar vez ao café da manhã. Eu haveria de me lembrar onde pusera o livro depois de aquietar o estômago.
Enquanto comia o cereal com as frutas vermelhas de todas as manhãs, tive a impressão de que havia sonhado algo importante, mas não conseguia resgatar nenhuma imagem; sentia apenas que envolvera amigos de faculdade que eu não via há muito tempo. Fui andando para os fundos, ainda comendo, e abri a porta para o quintal, onde pus-me sob o sol, dando colheradas, aquecendo o corpo e conferindo as poucas plantas do canteiro que eu chamava de meu jardim. Pousei a tigela do cereal num canto e reguei as plantas. Foi quando, não sei ao certo por onde, ele veio. O gato siamês que eu suspeitava ser de algum vizinho.
Cumprimentei-o, mas ele só quis saber de dirigir-se até a tigela, onde ainda restava um pouco de leite. Ele invadia minha casa religiosamente, nunca em outro horário que não aquele, esgueirava-se pelos vasos de plantas e ia deitar-se majestoso sobre as placas de ardósia que eu comprara para uma reforma no quintal, que acabara nunca realizando. Antes de se deitar, ele chegou à tigela, pareceu cheirá-la para beber, mas, desgostoso, o que fez foi dar um tapa preciso, de baixo para cima, fazendo a tigela virar e derramar o leite. Satisfeito com a sujeira, deitou-se na ardósia e começou o transe absoluto que era olhar para mim. Fitava-me cheio de argumentos sobre algum tópico que eu adoraria saber qual era, pois, como de costume, tamanha era a reprovação em seu olhar que só me restava concluir que ele tinha muitas razões para me julgar e, mais do que isso, que eu haveria de me envergonhar e tomar conhecimento imediato de uma falha minha, acatando seu julgamento sem relutar. No entanto, nessa manhã, seu olhar crítico não durou muito, parecia ansioso, preocupado em resolver alguma questão que era tanto minha quanto sua; balançava o rabo não cadenciadamente, mas em arroubos inadvertidos, como se lutasse com os segundos até o momento em que não aguentaria mais o silêncio e me diria aquilo que eu precisava ouvir.
“Bom dia para você também, Alfred.”
Eu lhe dera esse nome e ele sempre aparentou gostar, miando ao ouví-lo, mas dessa vez permaneceu quieto.
“Alfred?” Nada. “Bem, hoje eu gostaria de lhe pedir que fosse mais direto ao assunto. Quero usar meu primeiro dia de folga para alguma coisa mais prazerosa do que ser medido por suas ortodoxias.”
Eu puxei uma cadeira e me sentei bem em frente a ele. Ficamos alguns minutos nos observando, até eu perceber que podia fazer algo na sua companhia. Fui buscar meu caderno na sala e anotei ali algumas ideias sobre minha linha de raciocínio para a tese. Eu não havia escrito muito, quando Alfred miou baixinho.
“Não estou te ignorando. Peguei isso aqui justamente para anotar tudo o que você tiver pra hoje”. Ele gostou dessa ideia, pois mexeu o rabo com calma e se ajeitou mais confortavelmente na ardósia, como se dissesse: “Pois comecemos. O que precisa ficar bem claro, de uma vez por todas, é o seguinte…”
Mas é claro que não falou nada. Ele não seria capaz de começar uma frase indo tão direto ao ponto. Embora lacônico, sua oratória haveria de ser tão verbosa quanto os rascunhos de textos acadêmicos e literários que eu frequentemente lia para ele, e que certamente o influenciavam.
Então, de repente, lembrei-me que antes de tudo aquilo eu estava procurando pelo livro que sumira da estante. Voltei pra dentro de casa.
Comecei a cogitar a possibilidade de ter me enganado em achar que a prateleira ficara cheia. Decidi contar todos os livros da estante. Contei duas vezes. Eram quatrocentos e dezesseis. Um a menos.
Agachei-me para arrumar os livros e, como se ao me aproximar do problema eu pudesse entendê-lo melhor, olhei entre eles, onde o bendito estivera até a noite anterior. Caí para trás, tamanho o susto que levei. Recoloquei-me de cócoras e tornei a olhar o vão, para ter certeza de que vira o que vi.
Continua...

Essas foram as primeiras 1370 palavras. Gostaram da leitura? Adquiram o conto completo no link abaixo:


Alfred e a Estante (conto completo, disponível na Amazon)

http://www.amazon.com.br/Alfred-Estante-Leon-Idris-Azevedo-ebook/dp/B012YMXQCU



6 comentários:

  1. Consigo ver Alfred, posso imaginar a estante, sinto o gosto do cereal e das frutas. Isso faz o bom escritor, nos permite interagir com sua obra.
    Trabalho primoroso de pesquisa e estudo. Tanto conhecimento compartilhado e tanta coisa interessante a dizer. Prazer de ler voce, aprender e descobrir. Adoro as imagens tambem, como enriquecem e ilustram tao bem. Lindo, lindo! Sublime!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Você é minha referência de conhecimento e bom gosto. Quando sei que te agrado, é uma das provas de que eu preciso pra continuar! Muito obrigado pela palavras! <3

      Excluir
  2. É mágica a forma com a qual sua palavras me tocam, me fazem pensar, imaginar... É como disse hoje mais cedo, começo a ler o que você escreve e tudo para ao meu redor, sou eu e você. Só eu e suas palavras. Obrigada. <3

    ResponderExcluir
  3. Estou encantada com o seu texto, e me identifiquei na parte da compulsao pela leitura.
    Sinto muita falta dos livros aqui na Irlanda, logico que aqui tem muitas biblioctecas e um pais com uma cultura muito rica principalmente na literatura, mas Meu ingles e pobre para ler um bom livro , entao sinto falta de um livro em portugues , Isso que eu quiz dizer , mas voce pode pensar: "existem os livros virtuais"
    Mas quem e apaixonado por livros quer toca-Los , cheirar , ver a capa e as cores .
    Eu achava que EU tinha algum problema porque quando comeco ler um livro EU Quero chegar ate o fim e tenho dificuldade de parar de ler, mas como voce disse a vida NAO e feita de ferias.
    Voce acredita que eu trouxe alguns livros do brasil na Minha mala? Eu deixei muitas coisas para traz e geralmente as pessoas se preocupam com o peso da mala e no que podera levar e eu trouxe alguns livros :-)
    Mas eu nao sou intelectual, sou apenas uma amadora que gosta de ler, escrever e falar .
    O primeiro conto que EU amei na Minha vida foi : A cartomante - Machado de Assis.
    Ja estou aguardando o seu proximo texto.
    Gratidao

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado pela leitura e pelas belas palavras, Dulcineia! Fico feliz em saber que você também tem essa paixão pelos livros. É realmente algo muito mágico. Como você, eu não veria como viajar para fora do Brasil e não levar meus livros comigo na mala, fosse o peso que fosse!
      E a gratidão também é minha, por ter sua companhia aqui no blog! Até o próximo post!

      Excluir