quarta-feira, 10 de outubro de 2018

No que você está pensando?


Antes nos pediam que deixássemos recados, scraps, diretamente no espaço que era do outro. Ou depoimentos. Era preciso ir lá, atrás da página alheia e dizer ao outro tudo o que tínhamos de melhor para dizer. Era imprescindível ter um destinatário bem definido a cada mensagem enviada. Algo muito semelhante ao cotidiano da rua. Se eu não firmar um destinatário e sair simplesmente dizendo ao vento, certamente ninguém escutará. Nem que eu grite! Se gritar na Paulista, serei visto como louco. No orkut, os loucos apareciam menos, pois não podiam gritar tanto, tinham que falar e esperar a resposta. Uma manifestação mais autocentrada veio depois, ainda que limitada, quando atualizaram o layout e se tornou possível postar algumas coisas no perfil, graças àquela longa edição: vídeos numa aba, fotos noutra. E as pessoas também davam um jeito de caprichar na edição do 'profile', para dizer ao mundo quem elas eram; nisso, enchiam com mil informações a opção 'about me'; ali estava a bíblia pessoal de cada um. Citações de livros, letras de música, gírias, palavras propositalmente digitadas erradas, pois era moda ser assim: sabidamente errado. E na falta de emojis, bastavam os u.u, -.-, xD~, ^o^, ;D. Tudo aquilo descrevia bem nosso jeito inocente de ver as coisas. E de certa maneira, nos impedia de descrever aquelas outras partes de nós mesmos que talvez não fossem tão publicáveis.

Feliz ou infelizmente, tenho uma memória bem indexada. Ao menos, sobre as coisas antigas (minha memória é falha para os detalhes da ordem do dia, coisas que meu inconsciente apaga sem me avisar). Consigo acessar os anos, por exemplo, 2004, 2005, 2006 e 2007, e selecionar o que acontecia aqui e ali, comigo e no mundo (diminuta parcela do mundo que eu conhecia). Lembro do que diziam alguns perfis de amigos – alguns dos quais agora estão aqui no facebook. Lembro também de mim. Nessa época eu era emo. Odiava que me chamassem de emo. E eu dizia que eu não era emo!, especialmente a quem queria usar da palavra como xingamento (O Unilson era o único que sabia usar essa palavra sem ser pejorativo, ele falava e eu não me sentia ofendido). Mas olhando pra trás, agora sei que eu só podia me enquadrar naquela descrição de emo mesmo, devido à aparência que eu escolhia ter e às músicas que eu dizia gostar. Os cabelos alisados, caídos até a ponta do nariz; munhequeiras pretas, batucando New Found Glory e My Chemical Romance na mesa com o Suguita. Antes de ser emo, eu me achava bem feio e queria ficar bonito. Ser emo foi o jeito que eu encontrei pra ser estiloso e ter algum sucesso com alguma menina. Embora possa se argumentar com rigor, e razão, que esse estilo tenha me deixado mais feio do que eu já imaginava ser!

Bom, digo tudo isso só para lembrar do ambiente do orkut, de quando seguir mais de mil comunidades era motivo de orgulho: "olhem só quantas coisas eu aprecio! Eu sou uma pessoa com muitos gostos, eu faço parte de muitas comunidades e cada uma delas me representa. Em algumas delas eu até posto e converso com pessoas de todo o Brasil! Outras, eu mesmo criei."
Não tive myspace, pulei direto para o facebook em 2008. E, se não me engano, naquela época a página inicial nos perguntava: "o que você está fazendo agora?", antes de passar à intrometida e grave questão de hoje: "No que você está pensando, Leon?" Esta é uma pergunta que não tinha no orkut, embora todas as ações desempenhadas lá diluíssem essa questão e tudo ficasse subentendido. No facebook, porém, não!, o facebook não quer rodear o cerne da coisa e atrasar o verdadeiro espetáculo do humano público. O facebook se apresenta logo de cara, sem rodeios: "fale-nos o que você pensa, coloque pra fora isso que, em tese, deveria ser seu e só seu; publique o privado!" O twitter percebeu esse mesmo valor de exteriorização e construiu-se em torno do pensamento como acontecimento, como coisa curta: a opinião reduzida e redutora, como aforismo ruim.

Antes que nos déssemos conta, deixamos o campo seguro dos scraps para trás e adentramos o belíssimo novo mundo das convicções pessoais e do textão narrativo, como este, que nem todos lerão, pois não se define um destinatário, não se convoca o outro. É o mundo em que publicamos o privado sem vergonha alguma do que temos a dizer aos outros, pois o pensamento agora não necessita de amadurecimento e dúvida; não! Ele pode (e passa a dever) ser entregue como opinião formada. E ai daquele que ainda não formou uma opinião. Como assim você não tem opinião?! Não está convicto de que você DEVE pensar alguma coisa? Não vai nos dizer o que está aí dentro? Vamos, diga aos seus amigos, eles estão esperando. Eles esperam para poder decidir se você pensa como eles, se você É como eles, se seu pensamento encaixa-se nos deles. E pronto, num piscar de uma década, o pensamento e a opinião são formulações públicas, numa construção permanentemente interrompida. Obra interditada! É o abandono do que viria a ser. E quem lhe entrega o caminho abandonado de sua opinião? É o outro, que já percorreu o caminho e está esperando para saber se você seguirá por onde ele lhe assegura ser o ideal. No entanto, nem ele, nem o outro a quem ele deu ouvidos antes de se dirigir a você, desbravaram este caminho. Ninguém construiu essa coisa abandonada. E ninguém mais consegue saber quem abriu a mata e deixou a trilha ali, bonitinha, para você passar e chegar a lugar nenhum.
Ai de quem tem dúvida sobre o histórico de cada caminho!
A verdade, que sempre esteve na dúvida, agora está apenas na certeza. Está no dizer pelo dizer. Se fulano disse, está dito. E já é verdade-certeza. Verdade esta que a pessoa, no fundo, sabe se tratar de uma certeza que é de um outro. Mas isso não impede que todos se sintam donos. Aliás, ficam muitíssimo confortáveis em se fazerem donos do que é do outro.
E, assim, se coloca o inadmissível: a maioria de nós é inteiramente incapaz de justificar suas opiniões. E digo justificar naquele sentido das provas de história do Professor Valmir. Imagine se cada convicção e voto orgulhoso fosse seguido da necessidade de uma justificativa bem dada, bem formulada. Danou-se. Não seria possível enrolar, seria inaceitável não saber definir o significado e as implicações de cada palavra utilizada em sua justificativa. As respostas que sairiam dessa verdadeira obrigação (a da explicação) seriam risíveis e reprovadas. Risíveis tanto quanto foram aqueles textos que deixávamos, eu e você, no 'about me' do orkut. Em certa medida, como o é risível este texto que publico agora – se voltar a lê-lo daqui a uma década, será uma piada. Tão reprovável quanto querer ser mais bonito seguindo aquela moda de 2004.