sábado, 12 de dezembro de 2015

Diário de viagens que não voltam – Terceira nota

30 de setembro de 2013


As torres de San Gimignano são lembranças das disputas de famílias antigas. Como crianças sentadas na praia, comparando a altura dos montes de areia que constroem, os grandes nomes dessa cidadezinha resolviam atestar a superioridade pela altura que alcançavam. Nenhuma dessas torres é tão alta quanto os menores prédios da Avenida Paulista, mesmo assim, a maior delas me aterrorizou.
Chovia. Minha irmã e minha mãe haviam descoberto uma loja de tecido que fazia bordados em utensílios de cozinha e não saíram mais de lá. Dali a pouco anoiteceria e eu tinha meus planos de subir a maior torre da cidade enquanto ainda houvesse luz no céu. Se anoitecesse, eu perderia a vista da cidade. Resolvi deixá-las para trás e segui à entrada da Torre.
Talvez pela chuva, pelo dia, talvez pela hora, ninguém estava no primeiro andar. O primeiro lance de escada dava numa galeria de relíquias da cidade, também ali nenhuma vivalma. Passada a lojinha de entrada, também vazia, adquiri meu ticket e segui às catracas. O saguão da Torre propriamente dita, onde finalmente começaria a subida, revelava a perpendicularidade que eu enfrentaria: todos os degraus eram vazados, de ferro, de modo que era possível ver através deles até que altura eu deveria subir. Não avistei nenhum movimento, nem ouvi sinais de que alguém já estivesse a alguns lances dali. O silêncio, a princípio, me permitiu apreciar a subida e refletir sobre o valor milenar que aquele espaço adquirira. Esse é o tipo de interiorização que geralmente escapa aos espaços disputados por tantos turistas. Se visitar esses espaços em meio a uma caravana já pode ser especial, imagine quão profunda experiência não seria poder caminhar sem nenhuma outra pessoa por perto, escutando apenas os próprios passos e imaginando a origem de cada marca nas pedras.
Venci os primeiros lances. Embora aquela simples torre não tivesse a importância de um Coliseu, eu imaginei que aquelas escadas vivessem apinhadas de gente noutros dias não chuvosos de uma alta temporada. Mas passei a rever minhas ideias quando notei teias de aranha formadas entre os degraus e os corrimãos. O lance seguinte começou a ranger e me preocupei pela primeira vez com a idade dos degraus. Nisso, olhei para baixo e notei através do ferro vazado a altura que já me separava das catracas do primeiro nível.
Subi mais quatro ou cinco lances e comecei a ouvir as conversas dos pombos. Ou melhor, o monólogo interior de cada um deles; pois um pombo não espera que o outro termine de falar para só então respondê-lo. Um interpela o outro, grunhindo, como se a resmungar para si mesmos aquilo que repudiam do que o outro ainda não terminou de dizer. Em resumo, é uma balbúrdia bastante semelhante à Câmara dos Deputados (nos dias em que os nossos representantes não estão se batendo a caminho da máquina de voto, pois pombos não se batem por questões ideológicas).



Quando pombos se estapeiam geralmente é porque disputam comida, quando não precisam falar nada e em silêncio, famintos, entendem que só o contato físico pode resolver o problema.
Dos silêncios humanos também irrompem discussões terríveis. Quando eu era pequeno, acompanhando minha mãe em um grupo de estudos dela, fiquei na sala de espera, sentado num sofá diante da divisória de vidro pela qual eu podia avistar o ambiente em que as pessoas estavam sentadas, em roda. Em algum momento, um casal se levantou e saiu de dentro da sala. Eles gesticulavam, um para o outro, exasperados. Gesticulavam sem emitir som algum, embora a boca da mulher e do homem se movessem em palavras mudas. Ele então passou a falar de verdade. A mulher continuou a não responder da maneira convencional; apenas gesticulava. Pouco a pouco, aproximaram-se do sofá em que eu estava e pararam ao centro, sobre um tapete. Essa sala de espera estava escura, talvez eles não tivessem notado minha presença. A discussão estava para terminar, não sem antes alcançar um ponto crítico. Eu era pequeno demais para entender as disfunções sensoriais que poderiam explicar a estranheza daquela conversa, mas eu entendi melhor o que acontecia quando a mulher fez barulhos esquisitos. Ela também queria falar, respondê-lo enfim como ele fazia, com a voz, mas parecia encontrar dor para tirar as palavras da garganta. O som que ela conseguia fazer era impossível de se traduzir, mas o homem talvez entendesse, pois ele respondeu gritando alguma coisa que eu adoraria lembrar. Ela quis gesticular algo mais, mas ele de repente lançou os braços em sua direção e a jogou no chão, caindo em cima de seu corpo. Eu não consegui chamar ninguém, estava imobilizado pelo medo da cena. Ela agiu, da única maneira que poderia agir, encontrando forças para revidar. Começou a esmurrá-lo e puxar seu cabelo. A partir daí minha memória corta a cena e me vejo no colo de minha mãe. Alguém separara o casal e eles não estavam mais ali. Minha mãe me contou que eram pai e filha, e que ela era muda.
Soava como se houvesse centenas de pombos a alguns metros da minha cabeça. Comecei a imaginar o que eu poderia encontrar se continuasse subindo. Estariam todos reunidos ao redor de onde eu teria de surgir? Voariam para longe ou para cima de mim? Na hora lembrei-me da cena da senhora dos pombos do Central Park em Esqueceram de mim 2. Os pombos cobrindo o corpo da mulher era a cena mais assustadora de todas que eu vira na Sessão da Tarde. E se esses pombos italianos fossem mais famintos e estressados que os pombos de NYC?




Mas o andar final não deu ao ar livre, havia apenas janelas com vista para uma das praças e, no canto esquerdo, um campo de futebol. Notei então uma escada vertical, descendo de uma espécie de alçapão, aberto, um pequeno quadrado com a luz do fim de tarde chuvoso que pairava sobre a torre. Alguns pombos voavam ao redor das janelas, pousando vez ou outra na estreita sobra de pedra. Cogitei a possibilidade daquela escada não ser para acesso dos turistas, uma vez que estava inclinada demais e não tocava o chão. Talvez algum funcionário tivesse esquecido de retirá-la e o andar das janelas fosse o limite da subida para quem quisesse ver a cidade ali de cima. A vista não era ruim, mas as janelas não eram grandes, via-se apenas uma pequena parte da cidade e o vidro impedia que o ar fluísse. Sem ar, sem noção de espaço. Eu havia subido para sentir o espaço da cidade, queria poder vê-la por inteiro.
Coloquei um pé no primeiro degrau da suposta escada proibida. Ela balançou, parecia prestes a se soltar. Fiquei olhando-a por algum tempo, calculando riscos e me acovardando a cada lampejo de decisão; nisso devo ter levado dois minutos. Ou dez, não posso saber. Quando uma parte nossa conversa com a outra, o tempo se divide em dois: o tempo da parte que tenta convencer e o tempo da outra, que, ao argumentar em defesa, distrai ambas da percepção do tempo. Quem já não experimentou isso enquanto lava uma louça acumulada? A pia esvazia rapidamente quando temos algo a conversar conosco, especialmente quando discordamos do que temos a nos dizer.
Subiram vozes dos andares abaixo de mim. Pelo ferro vazado, avistei a cabeça deles. Era um casal. Postei-me numa das janelas e comecei a tirar fotos da vista, como quem acaba de chegar ali e não encontra muita razão para se amedrontar com a escada bamba do alçapão.




Assim que o casal chegou ao meu andar, olhei de relance para os seus rostos, para me mostrar solícito a cumprimentá-los, mas eles preferiram não olhar na minha direção. Falaram entre si. Eram portugueses. Fiquei quieto, aproveitando que não saberiam que eu podia entender o que falavam.
 Podemos continuar subindo?  ele perguntou.
Eles haviam parado diante da escada. A mulher não respondeu, foi ver a vista da janela. Ele colocou o primeiro pé, segurou nas laterais da escada e deu um impulso. Ela vacilou de uma forma ainda mais preocupante. Ele abortou a subida imediatamente.
 Acho que não é seguro  disse para si mesmo, embora pudesse querer dar à mulher a impressão de que fizera o teste por ela e estava prevenindo-a da tentativa.  É possível que seja só até este andar.
 Por isso mesmo devem ter colocado as janelas  ela disse.
Eles se afastaram da escada e foram se contentar com a vista de uma janela.
Ela prosseguiu dizendo que era necessário que houvesse janelas pois, certamente, em algum momento do passado, pessoas deviam ter escolhido a torre como ponto de suicídio. Não se precaveram o bastante ao deixar esta escada solta, disse o homem, concluindo com a opinião de que o suicídio de turistas era improvável, já que só se pode viajar feliz. A mulher riu por algum motivo, talvez achando engraçado a proposição de que depressivos não viajam. Ele reiterou dizendo que quem viaja o mundo deixa as infelicidades em casa. Eu soube que ele estava completamente errado em achar que a tristeza fica guardada em alguma gaveta quando fazemos a mala, mas notei que eu sempre fizera isso. Seja em viagens para cidades vizinhas ou para um país distante. Eu sempre deixei no meu quarto o que pudesse estar doendo. Todas minhas viagens foram idílicas. Não havia sensação de que o tempo passava e, olhando para trás, percebo que eu não realizava que em algum momento teria que partir e voltar.
Fui à escada outra vez e não dei apenas um passo. Eles se viraram para me olhar imediatamente. Subi dois, três, quatro, todos os degraus, a escada parecia prestes a se soltar, mas continuei firme, até sair com a cabeça na garoa.
Eles logo vieram atrás de mim. Foram até uma beirada do parapeito de pedra e eu à outra. Não havia pombo algum ali. Respirei o ar puro e frio, satisfeito por ter conseguido subir para sentir o espaço e enxergar o que eu tanto queria.

A cidade sulcava o morro sobre o qual havia sido construída, de modo que se assemelhava a uma daquelas miniaturas fechadas dentro de um globinho. O mundo ao redor do globo era muito mais vasto e os limites da cidade estavam próximos demais. Ela terminava logo depois de começar.