Chegar no dia seguinte é sempre esquecer
um pouco do dia anterior. Isso todo mundo sabe. É fácil concordar. Sacrificamos
nossa memória, é processo natural, fisiológico. Se não fossem as ferramentas da
língua, não haveria jeito de contar direito estória nenhuma. Muito menos História. Ainda
uso estória, é parte do que me recuso a esquecer. Língua-país-gente que não diferencia
essas duas palavras, não tem História, nem estórias. Quero sonhar. Quem mais
quer? Os monstros também sonham. Nossa monstruosidade é primeiro particular, mas é fenômeno útil quando
toma corpo em grupo. Esse monstro que é feito de todos acorrenta a si mesmo, ri e chora, corre e se
agarra, usa das próprias mãos como se fossem outras, contrárias ao desejo do
corpo; trôpego, esse monstro, confunde progresso e retrocesso. Ele sobe a
ladeira… até chegar lá embaixo, onde está aquela pedra enorme do castigo. Mas empurrar
essa pedra e castigar-se como um digno mortal, essa é uma ideia que não passa pela
cabeça do monstro. Pois ainda é criança e faz ciranda ao redor da pedra. Quer
provar-se gigante. Imortal. Para tanto, que outro jeito haveria, senão devorando parte
de sua própria natureza e ainda se achando vivo? À autofagia, o sacrifício é
uma nobre sobrevivência. Passa a ser bonito cortar-se, salgar-se e largar-se triunfante
sobre as labaredas. Parte do que fomos vira uma parte que já não é, e já não
está, porque se queimou e se engoliu. E pra onde vai? Como diz Luiz Bras em sua
pequena coleção de grandes horrores, o maior bem é tristonho, toda vida é sonho,
e o calor do infinito mistério é coisa da vida mesmo, pois a vida é incêndio.
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