sábado, 12 de dezembro de 2015

Diário de viagens que não voltam – Terceira nota

30 de setembro de 2013


As torres de San Gimignano são lembranças das disputas de famílias antigas. Como crianças sentadas na praia, comparando a altura dos montes de areia que constroem, os grandes nomes dessa cidadezinha resolviam atestar a superioridade pela altura que alcançavam. Nenhuma dessas torres é tão alta quanto os menores prédios da Avenida Paulista, mesmo assim, a maior delas me aterrorizou.
Chovia. Minha irmã e minha mãe haviam descoberto uma loja de tecido que fazia bordados em utensílios de cozinha e não saíram mais de lá. Dali a pouco anoiteceria e eu tinha meus planos de subir a maior torre da cidade enquanto ainda houvesse luz no céu. Se anoitecesse, eu perderia a vista da cidade. Resolvi deixá-las para trás e segui à entrada da Torre.
Talvez pela chuva, pelo dia, talvez pela hora, ninguém estava no primeiro andar. O primeiro lance de escada dava numa galeria de relíquias da cidade, também ali nenhuma vivalma. Passada a lojinha de entrada, também vazia, adquiri meu ticket e segui às catracas. O saguão da Torre propriamente dita, onde finalmente começaria a subida, revelava a perpendicularidade que eu enfrentaria: todos os degraus eram vazados, de ferro, de modo que era possível ver através deles até que altura eu deveria subir. Não avistei nenhum movimento, nem ouvi sinais de que alguém já estivesse a alguns lances dali. O silêncio, a princípio, me permitiu apreciar a subida e refletir sobre o valor milenar que aquele espaço adquirira. Esse é o tipo de interiorização que geralmente escapa aos espaços disputados por tantos turistas. Se visitar esses espaços em meio a uma caravana já pode ser especial, imagine quão profunda experiência não seria poder caminhar sem nenhuma outra pessoa por perto, escutando apenas os próprios passos e imaginando a origem de cada marca nas pedras.
Venci os primeiros lances. Embora aquela simples torre não tivesse a importância de um Coliseu, eu imaginei que aquelas escadas vivessem apinhadas de gente noutros dias não chuvosos de uma alta temporada. Mas passei a rever minhas ideias quando notei teias de aranha formadas entre os degraus e os corrimãos. O lance seguinte começou a ranger e me preocupei pela primeira vez com a idade dos degraus. Nisso, olhei para baixo e notei através do ferro vazado a altura que já me separava das catracas do primeiro nível.
Subi mais quatro ou cinco lances e comecei a ouvir as conversas dos pombos. Ou melhor, o monólogo interior de cada um deles; pois um pombo não espera que o outro termine de falar para só então respondê-lo. Um interpela o outro, grunhindo, como se a resmungar para si mesmos aquilo que repudiam do que o outro ainda não terminou de dizer. Em resumo, é uma balbúrdia bastante semelhante à Câmara dos Deputados (nos dias em que os nossos representantes não estão se batendo a caminho da máquina de voto, pois pombos não se batem por questões ideológicas).



Quando pombos se estapeiam geralmente é porque disputam comida, quando não precisam falar nada e em silêncio, famintos, entendem que só o contato físico pode resolver o problema.
Dos silêncios humanos também irrompem discussões terríveis. Quando eu era pequeno, acompanhando minha mãe em um grupo de estudos dela, fiquei na sala de espera, sentado num sofá diante da divisória de vidro pela qual eu podia avistar o ambiente em que as pessoas estavam sentadas, em roda. Em algum momento, um casal se levantou e saiu de dentro da sala. Eles gesticulavam, um para o outro, exasperados. Gesticulavam sem emitir som algum, embora a boca da mulher e do homem se movessem em palavras mudas. Ele então passou a falar de verdade. A mulher continuou a não responder da maneira convencional; apenas gesticulava. Pouco a pouco, aproximaram-se do sofá em que eu estava e pararam ao centro, sobre um tapete. Essa sala de espera estava escura, talvez eles não tivessem notado minha presença. A discussão estava para terminar, não sem antes alcançar um ponto crítico. Eu era pequeno demais para entender as disfunções sensoriais que poderiam explicar a estranheza daquela conversa, mas eu entendi melhor o que acontecia quando a mulher fez barulhos esquisitos. Ela também queria falar, respondê-lo enfim como ele fazia, com a voz, mas parecia encontrar dor para tirar as palavras da garganta. O som que ela conseguia fazer era impossível de se traduzir, mas o homem talvez entendesse, pois ele respondeu gritando alguma coisa que eu adoraria lembrar. Ela quis gesticular algo mais, mas ele de repente lançou os braços em sua direção e a jogou no chão, caindo em cima de seu corpo. Eu não consegui chamar ninguém, estava imobilizado pelo medo da cena. Ela agiu, da única maneira que poderia agir, encontrando forças para revidar. Começou a esmurrá-lo e puxar seu cabelo. A partir daí minha memória corta a cena e me vejo no colo de minha mãe. Alguém separara o casal e eles não estavam mais ali. Minha mãe me contou que eram pai e filha, e que ela era muda.
Soava como se houvesse centenas de pombos a alguns metros da minha cabeça. Comecei a imaginar o que eu poderia encontrar se continuasse subindo. Estariam todos reunidos ao redor de onde eu teria de surgir? Voariam para longe ou para cima de mim? Na hora lembrei-me da cena da senhora dos pombos do Central Park em Esqueceram de mim 2. Os pombos cobrindo o corpo da mulher era a cena mais assustadora de todas que eu vira na Sessão da Tarde. E se esses pombos italianos fossem mais famintos e estressados que os pombos de NYC?




Mas o andar final não deu ao ar livre, havia apenas janelas com vista para uma das praças e, no canto esquerdo, um campo de futebol. Notei então uma escada vertical, descendo de uma espécie de alçapão, aberto, um pequeno quadrado com a luz do fim de tarde chuvoso que pairava sobre a torre. Alguns pombos voavam ao redor das janelas, pousando vez ou outra na estreita sobra de pedra. Cogitei a possibilidade daquela escada não ser para acesso dos turistas, uma vez que estava inclinada demais e não tocava o chão. Talvez algum funcionário tivesse esquecido de retirá-la e o andar das janelas fosse o limite da subida para quem quisesse ver a cidade ali de cima. A vista não era ruim, mas as janelas não eram grandes, via-se apenas uma pequena parte da cidade e o vidro impedia que o ar fluísse. Sem ar, sem noção de espaço. Eu havia subido para sentir o espaço da cidade, queria poder vê-la por inteiro.
Coloquei um pé no primeiro degrau da suposta escada proibida. Ela balançou, parecia prestes a se soltar. Fiquei olhando-a por algum tempo, calculando riscos e me acovardando a cada lampejo de decisão; nisso devo ter levado dois minutos. Ou dez, não posso saber. Quando uma parte nossa conversa com a outra, o tempo se divide em dois: o tempo da parte que tenta convencer e o tempo da outra, que, ao argumentar em defesa, distrai ambas da percepção do tempo. Quem já não experimentou isso enquanto lava uma louça acumulada? A pia esvazia rapidamente quando temos algo a conversar conosco, especialmente quando discordamos do que temos a nos dizer.
Subiram vozes dos andares abaixo de mim. Pelo ferro vazado, avistei a cabeça deles. Era um casal. Postei-me numa das janelas e comecei a tirar fotos da vista, como quem acaba de chegar ali e não encontra muita razão para se amedrontar com a escada bamba do alçapão.




Assim que o casal chegou ao meu andar, olhei de relance para os seus rostos, para me mostrar solícito a cumprimentá-los, mas eles preferiram não olhar na minha direção. Falaram entre si. Eram portugueses. Fiquei quieto, aproveitando que não saberiam que eu podia entender o que falavam.
 Podemos continuar subindo?  ele perguntou.
Eles haviam parado diante da escada. A mulher não respondeu, foi ver a vista da janela. Ele colocou o primeiro pé, segurou nas laterais da escada e deu um impulso. Ela vacilou de uma forma ainda mais preocupante. Ele abortou a subida imediatamente.
 Acho que não é seguro  disse para si mesmo, embora pudesse querer dar à mulher a impressão de que fizera o teste por ela e estava prevenindo-a da tentativa.  É possível que seja só até este andar.
 Por isso mesmo devem ter colocado as janelas  ela disse.
Eles se afastaram da escada e foram se contentar com a vista de uma janela.
Ela prosseguiu dizendo que era necessário que houvesse janelas pois, certamente, em algum momento do passado, pessoas deviam ter escolhido a torre como ponto de suicídio. Não se precaveram o bastante ao deixar esta escada solta, disse o homem, concluindo com a opinião de que o suicídio de turistas era improvável, já que só se pode viajar feliz. A mulher riu por algum motivo, talvez achando engraçado a proposição de que depressivos não viajam. Ele reiterou dizendo que quem viaja o mundo deixa as infelicidades em casa. Eu soube que ele estava completamente errado em achar que a tristeza fica guardada em alguma gaveta quando fazemos a mala, mas notei que eu sempre fizera isso. Seja em viagens para cidades vizinhas ou para um país distante. Eu sempre deixei no meu quarto o que pudesse estar doendo. Todas minhas viagens foram idílicas. Não havia sensação de que o tempo passava e, olhando para trás, percebo que eu não realizava que em algum momento teria que partir e voltar.
Fui à escada outra vez e não dei apenas um passo. Eles se viraram para me olhar imediatamente. Subi dois, três, quatro, todos os degraus, a escada parecia prestes a se soltar, mas continuei firme, até sair com a cabeça na garoa.
Eles logo vieram atrás de mim. Foram até uma beirada do parapeito de pedra e eu à outra. Não havia pombo algum ali. Respirei o ar puro e frio, satisfeito por ter conseguido subir para sentir o espaço e enxergar o que eu tanto queria.

A cidade sulcava o morro sobre o qual havia sido construída, de modo que se assemelhava a uma daquelas miniaturas fechadas dentro de um globinho. O mundo ao redor do globo era muito mais vasto e os limites da cidade estavam próximos demais. Ela terminava logo depois de começar.





quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Esquecimento

Não faz muito tempo que senti de perto a destruição que é o não lembrar. Eu sempre tive alguma noção de que somos apenas o que lembramos, que existimos na medida em que formamos e reformamos uma ideia do que fomos, mas demorei a realizar que também somos o que os outros lembram de nós. Pois como seria possível se reconhecer naquele piquenique, se a outra pessoa que esteve lá não está mais aqui? Como ter certeza da própria infância se as testemunhas se foram e não podem mais confirmar suas fantasias? Quando se ama alguém por uma vida, nossa própria identidade funda-se na capacidade da outra pessoa se lembrar de quem fomos, do que dizíamos e fazíamos, do que desejávamos e repudiávamos. A partir do momento em que o outro se esquece do que você foi, você deixa de ser aquilo e também deixa de ser isto. O ego sobrevive a quase tudo, mas uma identidade pode ruir com a mesma facilidade com que uma criança vai ao chão após os primeiros passos aprendidos. Pois tudo o que pensamos ser a personalidade e a autoconsciência não passa de um andar trôpego, que melhor avança quando decide se arrastar e colher fragmentos de uma memória seletiva e inocente.
Meu maior medo, hoje, é esquecer de quem eu fui neste instante... que já passou.

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O livro mais recente que li sobre o esquecimento é O Gigante Enterrado, que resenhei para o meu canal prelúdios no YouTube. Veja aqui:
(E não se esqueça de se inscrever no canal!)




segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Nunca a encontrei

Encontrei um cílio dentro de um dos livros antigos que consulto na biblioteca. Ou talvez fosse um pelo de uma sobrancelha. Entre as páginas. E o assoprei, por impulso. Imediatamente um sentimento de culpa e violação me tomou e me arrependi sem entender o porquê.

Fui ao chão, metendo-me a procurar por aquela pessoa cujos olhos, sabe-se lá quando, ontem ou décadas atrás, haviam passado pelas palavras que os meus olhos liam ali há pouco.






sábado, 10 de outubro de 2015

O Algoz

Os ponteiros dos relógios do mundo todo só giram porque nós os obrigamos. Assim como o Sol não passa pelo céu, o tempo não está passando pelos relógios, nem por nós. O tempo não nos mata.
Não podemos dizer que o tempo está em movimento, pois o tempo não está aqui nem ali. Tempo não se obtém, não se possui. Não é possível segurá-lo ou ainda imaginar que ele está à frente, à toda velocidade. Não se deve antecipar sua passagem nem temer perdê-lo para sempre. Tempo não se perde, não se acha. Para achá-lo, ele precisaria estar. Para perdê-lo, ele precisaria ser. Perdemos apenas a nós mesmos, porque somos e estamos. Nós é que passamos, sem jamais conseguirmos observar o que está à volta e à frente ou o que fica pra trás, por não sabermos ou não podermos olhar, talvez por não querermos. É certo que não conseguimos. Nessa nossa multidão ninguém vê o que vai embora. Estão todos com os olhos dirigidos a um ponto cego e escuro, que se aproxima tristemente rápido. O tempo não corre. Está parado. Nós é que corremos. Cada vez mais rápido, sem carregarmos nada além de imagens, sem termos fôlego para crescer como as montanhas crescem. Carregamos linguagem, que também perde fôlego. À nossa imagem e semelhança, inventamos qualquer frase, que, por natureza, vence períodos para dirigir-se sempre a um ponto final.

revisitado em 11/04/16


Saturno Cortando as Asas do Cupido com uma Foice (1802) Ivan Akimov (Tretyakov Gallery)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Sobre o que nos separa

Olá, pessoal! Hoje vou compartilhar três coisas com vocês. Primeiro, um novo conto e, mais abaixo, dois vídeos.
O conto de hoje é intitulado...



Sobre o que nos separa

Desordenaram os trilhos de trem e isso causou um enorme problema – você poderia pensar estar seguindo rumo a Nova Iorque e acabar chegando em Kinshasa, ou rumo a Shangai e encontrar-se perdido em Instambul.
A princípio, o problema pareceu se limitar a uma perda de compromissos em massa, de centenas de milhares de pessoas ao mesmo tempo, o que já seria terrivelmente caótico, mas o agravante era o seguinte: a estranha anomalia não foi um acontecimento momentâneo e ninguém poderia voltar tão facilmente para onde estivera. Todos os trens, de ferrovias e metrôs do mundo todo foram magicamente alterados. Era possível sair de Manhattan e parar, poucos minutos depois na estação Waterloo em Londres, ou na Odéon de Paris. Trens carregados de carvão e cobre desapareciam do Arizona e paravam na Rússia e no Brasil; outros tantos carregados de contêiners com alimentos paravam em trilhos há muito inutilizados na África subsaariana e em meio a casas de cidades pobres no sul da Ásia. Essas cargas eram recebidas com louvor, interpretadas pelas comunidades necessitadas como um intencionado envio humanitário. Mas dessa aleatoriedade, raros destinos eram benéficos. Embora o pior não tivesse ocorrido – por alguma razão, não houve notícia de nem sequer um acidente, nenhum trem colidiu com outro; todos eram desviados numa harmoniosa substituição – por outro lado, em questão de semanas, a economia mundial foi fortemente prejudicada. Nenhum país se sentiu seguro em transportar o que devia. Em todas as metrópoles, aqueles que desejassem ir ao trabalho tinham de evitar o metrô, congestionando então as ruas de uma maneira nunca antes vista. Transportes que assegurassem um destino eram possíveis apenas pelo mar, pelo ar e pelas estradas. Naturalmente, a situação sobrecarregou esses meios e conseguir vagas em voos emergenciais pela Europa tornou-se um pesadelo. O espaço aéreo emaranhava-se perigosamente.
(CONTINUA...)


Esses foram os dois primeiros parágrafos. O conto inteiro está disponível na Amazon! Se você não possui um Kindle e-reader, também conseguirá ler. Basta baixar o aplicativo Kindle para celulares, tablets e computadores (o app também pode ser encontrado pela Play Store do seu Android ou pela App Store do seu iPhone). Depois é só colocar na Busca o título, ou o meu nome.

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Passei as últimas semanas sem fazer postagens pois me dediquei a ampliar minha produção de conteúdo para vocês. Decidi estender o espaço desse blog e fazê-lo chegar ao YouTube, ao canal prelúdios. Isso custou mais tempo, principalmente a edição de vídeos (algo que estou aprendendo melhor enquanto faço). Mas continuarei a fazer postagens aqui e já tenho textos preparados para as próximas semanas.
No primeiro vídeo do canal, falo sobre quais leituras me formaram como leitor, desde a infância até a faculdade, falo também sobre o lançamento de O Deserto dos Meus Olhos e respondo a um dos primeiros leitores, o Ronni Anderson. (Se quiserem, deem uma olhada no site dele, tem bastante conteúdo).
No segundo vídeo, conto por que, ao contrario do que normalmente se espera, não gostei do livro Perdido em Marte, de Andy Weir, e adorei o filme, agora em cartaz nos cinemas, dirigido por Ridley Scott (Gladiador, Exodus, Alien, Prometheus) e estrelado pelo Matt Damon.

Podem se inscrever no canal, pois pretendo produzir mais para vocês!



segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O Leão de Bronze

Em Gelateria il Cantagalli, o post do dia 17 de agosto, eu compartilhei um trecho que fazia parte de um conto, O Leão de Bronze, enviado a um concurso da editora Andross. Para quem se interessou por saber como poderia continuar aquele parágrafo, que história haveria para contar dali em diante, a boa notícia que trago hoje é que o conto foi aprovado e selecionado para publicação da coletânea de contos intitulada Marcas Eternas, organizada por Leandro Schulai, com lançamento previsto para novembro de 2015, na 6ª edição do evento Livros em Pauta!
Agradeço ao Leandro e à editora pela leitura e pelo projeto promissor. Estou curioso para saber quais histórias trarão os outros contos do livro!
Aos leitores interessados em obter uma cópia de Marcas Eternas: eu receberei da editora 20 exemplares do livro para venda pessoal. Assim que os livros estiverem em minhas mãos, trarei notícias.




sábado, 12 de setembro de 2015

Diário de viagens que não voltam – Segunda nota

02 de outubro de 2013
Viareggio, Via Michele Coppino, 02/10/13

Havíamos parado em Viareggio para conhecer a cidade brevemente. Era jantar e partir, mas não encontrávamos muitos lugares abertos. Apenas bares pouco convidativos para a noite em família. Não era tão tarde, mas andamos até as docas com a sensação de estarmos numa cidade abandonada. Ao fim da Via Michele Coppino, paramos diante de yachts ancorados e encarei o mar e a escuridão do horizonte ali escondido, tentando descobrir para que porção do Mar Mediterrâneo eu estava virado. Estaria adiante a Grécia ou a Sardenha? A Croácia ou o norte da África? Fizemos o caminho de volta e encontramos um restaurante ainda aberto, que não havíamos notado antes. Ocupamos uma mesa do lado de fora, na calçada, com vista para a Piazza Lorenzo Viani. Lembro de ter procurado por um Wi-fi, assim que sentamos. Desejava abrir o Whatsapp para escrever algo para minha namorada, para pedir desculpas por não ter conseguido mandar nenhuma mensagem naquele dia. Era início de relacionamento, quando o silêncio de um dia do outro lado do mundo parecia poder comprometer muita coisa.
Não notei a chegada de um homem. Quando o vi, ele já estava ali. Era uma daquelas pessoas que encontramos aos montes na Itália, um imigrante ou refugiado, lutando para vender alguma coisa. Ele estava de costas para a nossa mesa, dirigia-se ao interior do restaurante, pelo vidro, em silêncio, movendo no ar uma rosa vermelha. Na outra mão segurava um buquê. Ele se esforçava para se fazer de vitrine para aqueles que jantavam, embora o jantar daquelas pessoas fosse a verdadeira vitrine aos olhos dele.
Minha memória não me permite saber o tempo que isso levou, mas a imagem que tenho é ininterrupta, ele parece ficar ali pra sempre. Talvez ele tenha mesmo ficado por longos minutos, olhando para dentro, mas em algum momento o interrompemos. Minha mãe o chamou. Ele se virou e veio até a nossa mesa. Não possuía um dos olhos. No lugar, uma cicatriz.
“Where are you from?”, minha mãe perguntou.
“Bangladesh”, ele disse. “And you?”
Respondemos e, por alguma razão, ele sorriu com genuína felicidade.
Dissemos que queríamos uma flor. Ele disse 3 euros, demos 5 e ele me entregou a rosa. Agradeceu, se afastou da calçada do restaurante e foi sumindo, lentamente, pela rua.
Senti que em algum momento escreveria sobre ele, mas não sabia quando iria fazê-lo. Gostaria de lembrar o seu nome. Minha mãe perguntou, ele disse, mas eu não anotei. Estava mais preocupado em pousar a rosa vermelha na cadeira à minha direita, onde eu desejava que ela estivesse naquele momento. Tirei uma foto, planejando juntar com alguma mensagem romântica e mandar por Whatsapp assim que conseguisse um sinal de Wi-fi. Só tive internet mais tarde, de volta ao hotel, quando já me sentia bobo demais por querer mostrar aquilo. Guardei pra mim mesmo, como eu fazia com tantas outras coisas.



Noite de 02/10/13, Nitens Ristorante Di Giampaoli e Paladini

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Devo ser sincero logo de início

Em meados de 2009, eu havia acabado de escrever um romance policial  que guardo na gaveta pois sei demais de seus defeitos. Foi depois de rejeitar esse primeiro livro que me dei conta de que eu havia mudado meu jeito de pensar. E de escrever também, é claro. Tive a ideia para uma nova estória. No antigo Espaço Aono da Av. Brigadeiro Luís Antônio, escrevi as primeiras palavras do que depois se tornou o prólogo de O deserto dos meus olhos. Esse lugar era um spa em que minha mãe costumava ocupar uma grande sala para as reuniões semanais do seu grupo de discussão do livro Um Curso em Milagres. Eu a acompanhava sempre, pois prezava pelo silêncio de uma das salas de espera do local. O único barulho eventual era o telefone seguido da voz da Kelma, a secretária que trabalhava na sala ao lado, e a única rara interrupção pessoal era a da Val, a faxineira que gostava de vir me dar beijos e dizer palavras de encorajamento à escrita; ela sabia que eu escrevia ficção, eu lhe contara depois de ela ter questionado se eu não me sentia sozinho ali, escrevendo.
"Jovem da sua idade não pode ficar parado desse jeito não", ela disse uma vez e eu anotei suas palavras. "Velho é que fica parado querendo morrer. Vê se anda de lá pra cá, bebe uma água."
Algumas pessoas veem a solidão como uma prisão, parecia à Val que escrever era um agravante da solidão, um atestado. Como se meu silêncio com o papel só pudesse significar tristeza. Eu lhe dizia que era o contrário. “Eu gosto bastante de escrever”, devo ter dito algo simples assim, não lembro. A prisão, afinal, está nos olhos, que vez ou outra nos fazem acreditar que só podemos ver aquilo que de fato nos cerca. É a prisão da mente sem imaginação. O problema parece ser então outro: quem encontramos em nós quando estamos sozinhos? Há quem se desespere, há quem se acalme, há quem enlouqueça.

O Arlequim, um dos personagens
de O Deserto dos Meus Olhos
Crescer em uma casa de psicólogas é garantia de ser exposto a algumas palavras especiais. Pode parecer simples agora, mas quando eu era pequeno as palavras inconsciente e ego causaram um impacto notável na forma como eu enxergava os meus amigos. Embora eu comemore efusivo todas as exposições que tive aos estudos de minha irmã e minha mãe, é claro que isso não se trata de um privilégio de casas de psicólogos. Tratava-se de um adiantamento de algumas verdades acessíveis a qualquer um que olhe para o humano. O que acontecia comigo é que minha mãe, além de psicoterapeuta, é também professora de Meditação Transcendental, da qual me tornei praticante desde os 5 anos. Por isso tive contato com uma ferramenta especial: conhecer-me enquanto eu ainda tinha pouco a descobrir em mim mesmo. Esse farol voltado para uma identidade em formação resultava, vejo agora, entre outras coisas, em uma benevolência prematura. Talvez o perdão já fosse ingênito em mim, mas diariamente aprendi a observar a falta de controle que as pessoas têm sobre os próprios atos. Eu podia chegar em casa irritado e triste por ser xingado por um menino mais velho, ou por ser chamado de raquítico por uma colega, mas logo ouvia de minha mãe os motivos que levam alguém a apontar os defeitos de outra pessoa. Eu voltava no dia seguinte preparado para perceber a fraqueza daqueles que desejavam me diminuir. O inconsciente e o ego por trás das ações não eram apenas duas palavras a mais no meu vocabulário.
Minha mãe fez ainda a maior contribuição para o meu despertar para as palavras, muito antes que eu pudesse pensar em escrever alguma coisa. Ela costumava anotar o que eu dizia sobre qualquer coisa  vida, morte, alma, espírito, deuses, paraíso, céu, sol e planetas. Ela garantia que eram frases bonitas, profundas. Fossem ou não frases boas, o maior valor daquele ato era mostrar a uma criança que toda ideia pode ser registrada, palavra por palavra. No dia seguinte, eu lia junto com ela o que eu havia falado, sem me lembrar como eu pensara naquilo. Era natural então, que eu logo passasse a prestar mais atenção na formação de cada pensamento, tornei-me um vigia das frases que surgiam na mente. Com minha mãe aprendi a pensar, porque aprendi a ver o meu pensamento desmontado em riscos de grafite ou tinta no papel.

Maharishi Mahesh Yogi e os Beatles. Ao fundo, o quadro que minha mãe
também tem em seu consultório; diante dele, aprendemos todos a meditar.
Hoje em dia eu mesmo empunho o lápis e a caneta que ela usava por mim. Prefiro escrever à mão toda primeira ideia. Quando tenho um rascunho longo, venho então para a frente do computador e trabalho em melhorias. Embora o alicerce do texto esteja todo lá, visível no rascunho, o resultado final normalmente esconde a estrutura original e apresenta um corpo inédito até para mim. Quando me surpreendo e mal enxergo a estrutura, é quando me dou por satisfeito. A mágica que enxergo na escrita, apreendi lendo. Mas a mágica que tento empreender ao escrever, descubro a cada dia, a cada palavra.


Cadernos dos últimos anos
Não só em homenagem à minha mãe escrevo, mas também ao meu avô materno, que amava sua escrivaninha  minha mãe me conta que ninguém podia mexer nela e ele lá se sentava religiosamente. É dito que seu maior sonho era viajar pelo mundo e enviar cartas contando sobre os países que visitava. Vejo sua escrivaninha como a passagem de ida e volta para qualquer lugar que quisesse imaginar. Se o dinheiro não podia levá-lo até esses lugares, talvez algumas palavras pudessem fazê-lo.
Tive a felicidade de conhecer Praga pessoalmente e garantir maior fidelidade à narrativa dos capítulos de O deserto dos meus olhos que se passam lá, mas o mais curioso é que, bem antes que eu pudesse imaginar que um dia viajaria à República Tcheca, as palavras que usei para transportar meus personagens anteciparam coisas que eu depois vivi ali. Escrevi detalhes impossíveis de se saber antes que eu visse Praga pessoalmente. Em 2010, por exemplo, imaginei a Igreja de Tyn com a porta lateral fechada e o interior em reforma, e encontrei essa mesma porta fechada para reforma em 2013. Escrevi sobre a Caverna Mágica no Monte Petrin e seu anfitrião excêntrico; anos depois o encontrei, por sorte, num momento fortuito, enquanto ele saía de sua toca, ainda de pijamas, avesso a falar com alguém. Tive de insistir por uma foto.


Reon Argondian e eu, em sua Caverna Mágica no Monte Petrin.

Durante a escrita de O deserto dos meus olhos, eu havia começado a assistir à série Cosmos, a original com Carl Sagan, dando vazão a uma paixão que eu tinha desde pequeno: o Universo. Era o tema de um dos livros que meu pai tirou de sua biblioteca particular para me dar, quando eu devia ter 12 ou 13 anos. Astronomia, de Joachim Herrmann. E eu adorava abri-lo na esperança de entender alguma coisa que estava escrita ali, querendo me tornar tão inteligente quanto o meu pai, que em mais de uma ocasião tentara me explicar a Teoria da Relatividade de Einstein. Pouco entendimento eu alcançava, tanto da teoria como do livro de Hermann, mas as imagens que a explicação de meu pai e o livro suscitavam me fascinavam. Com Carl Sagan eu sentia poder chegar bem perto de entender o que minha paixão até então apenas fantasiava, com ele conheci melhor o astrônomo Johannes Kepler e apreendi conceitos importantíssimos para a organização da minha percepção racional do mundo e, principalmente, do lugar do homem no Universo. Com ele me atentei à brevidade das existências, de modo semelhante ao que encontrei na Impermanência do budismo. São razões para eu voltar sempre às palavras, certo de que elas representam aquele refúgio capaz de alongar os instantes e preservar parte do que é provisório.


Nós somos como borboletas, que vibram por um dia e pensam que é para sempre.
Carl Sagan

Carl Sagan e seu primeiro filho
Foi de alguma forma aflorando minhas duas grandes paixões  o espírito da meditação e da psicologia de minha mãe e o universo da astronomia de meu pai –, que cheguei à ideia de levar meu protagonista não apenas a um templo budista, mas também até a casa de Kepler, em Praga. Se eu pudesse colocar na ficção aquilo que eu mais amasse, a escrita me levaria naturalmente à descoberta íntima e verossímil de um personagem. Ao descobri-lo, segui-o, apesar de ele não parecer falar da minha terra. Segui-o pois ele falava de suas paixões, temores e culpas. E é para isso que qualquer um escreve, para afastar o medo e iluminar o humano, à parte de fronteiras geográficas, aquele humano desterrado por não lembrar ao certo sua origem.

Ganesh, a encarnação corporal do Cosmos. Um dos
meus amuletos para a escrita, precioso presente de Larissa,
querida como um membro da minha família.


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O Deserto dos Meus Olhos está à venda em www.leonidris.com . Também está disponível como livro digital, pela Amazon, e pode ser lido em tablets, celulares e computadores, além do eBook Kindle:

Ilustração da capa (Raven Moon) cedida
pelo artista canadense, Lance Weisser.
Acesse o blog do pintor aqui:
http://weisserwatercolours.com/


PRÓLOGO

Devo ser sincero logo de início, enquanto sua atenção ainda não me foi prometida, enquanto não posso traí-la. Nem tudo o que contarei nas próximas páginas aconteceu realmente comigo. As pessoas e os lugares que garantirei ter conhecido fazem parte de uma série de inventos que só se mostraram assim no dia em que dei cabo de cada uma das minhas companhias. As descobertas que guardo não me perturbam; aquecem-me, mantêm-me alerta. Há um limite para qualquer mente submetida ao que fui submetido, mas o único arquiteto daquilo que desaba sobre ti és tu mesmo, como ele me disse no fim de tudo. É preciso sobreviver às próprias mortes, ao sufocamento de si mesmo na névoa venenosa do caos e do desamparo, névoa que vemos partir do mundo e dos supostos perpetradores do nosso sofrimento, mas da qual só nos libertamos quando nos descobrimos seu único feitor. Só deixarás de temer tudo o que conheces quando conheceres tudo o que temes. E o temor, o medo, por sua vez, é correlato direto da culpa. Culpa do que se fez e do que não se fez, do que se pensa ter feito e do que se pensa ter deixado de fazer. Somos muito criativos quando a tarefa é nos culpar, seja um louco como eu ou não. Mas, por ora, não me delongarei quanto a essas diferenciações; só me explico quando temo ser julgado, e não creio que serei julgado tão cedo.
Estou longe do estado purificado dos monges budistas com quem pude conviver, mas me vejo limpo o suficiente para conseguir voltar a meditar diariamente. Para o louco, existe um momento em que a loucura deixa de ser corriqueira, e a sanidade, amedrontadora. Basta que ele viva o bastante. É certo que poucos puderam sobreviver a si próprios pelo tempo necessário para o despertar, e da maioria que o fez não se pode dizer que seja muito falante… ou paciente para lidar com o papel. Pois eu o serei. Contarei sobre todos os meus dias, sobre os lugares e as pessoas, sobre todas as inverdades que me levaram à sanidade.
Não faltaram indícios de que nada daquilo era real. Afora todas as esquisitices e improbabilidades, as súbitas disposições e indisposições, ainda havia o fato de que toda vez que essa minha Arcádia, suspensa sobre tudo, me provocava o medo da morte ou o medo da felicidade, eu estava destinado a abrir os olhos num imaginário distinto do anterior. Conforme acontecia, demorei a tomar ciência de que havia como escapar dos meus próprios mecanismos. Portanto, no princípio, ponto em que jamais me questionaria sobre a falta de continuidade do que ocorrera no dia anterior, pareceu-me muitíssimo natural abrir os olhos e me encontrar na Espanha do século dezenove, em meio a acontecimentos talvez históricos – digo talvez, pois desde minha libertação não tive tempo de ir a alguma biblioteca conferir os fatos…
É uma mentira, essa frase acima… Prometi ser sincero e não quebrarei a promessa nas primeiras páginas. Não só tive tempo disponível, como bem poderia fazê-lo agora, uma vez que escrevo estas palavras sentado a uma mesa da Biblioteca Estadual de Berlim. Eu poderia ir à procura do livro que me sanasse a dúvida, mas tenho urgência em falar-lhe. O que menos importa agora, tanto para mim quanto para você, é se Juan, Domingo, Francisco e Ramón existiram ou se eu realmente tive participação no destronamento da rainha Isabel II.
(Continua...)



Rascunhos


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Gelateria il Cantagalli

Dizem que a Itália é romântica. O Woody Allen, por exemplo, me prometeu que eu encontraria o amor na capital, e eu sempre acreditei no que ele me diz. Tive de sair de Arezzo na Toscana e me mudar para Roma por razões profissionais, mas eis que, na capital, senti como se eu estivesse no centro de São Paulo, ali perto do Arouche, e pior, durante alguma Virada Cultural. Gosto do evento, não me entenda mal. Estive na edição de 2013 e sobrevivi às facas e balas perdidas. Mas aqui encontrei o mesmo amontoado de pessoas andando de um lado para o outro como se em procissão. E também os numerosos vendedores de badulaques indesejáveis estão lá e aqui. Aqui na Itália, eles são os bravos imigrantes ilegais, que atravessaram o mar mediterrâneo e se jogaram com a cara e a coragem em becos e praças para vender bolsas, rosas quase murchas e uns trocinhos brilhantes com cara de geleca que voam bem alto de um jeito que seria até belo se, depois de voarem, voltassem para a nossa mão. Um dia, veja só, tentei chegar perto de uma fonte famosa pra jogar uma moedinha, mas tive que jogar de longe, porque os turistas se aglutinavam ao redor dela e dali não sairiam nem por um decreto do Papa. E isso é assim todo santo dia. Te garanto que eu consigo uma foto melhor nos chafarizes da Praça da República. O Criolo só acha que não existe amor em SP porque não veio pra cá. Se nas ruas daqui ao menos tocasse o mesmo repertório do palco Julio Prestes, Caetano Veloso e Fabio Jr. fariam as turistas lembrarem do amor e a Daniela Mercury tremularia as rachaduras do Coliseu, enquanto os novos fiéis do axé dançariam apertadinhos nos corredores em que o Russell Crowe afiara sua espada. Mesmo assim, porém, eu me apaixonei em Roma.
É claro que meus olhos iriam parar em alguém, uma hora ou outra. Isso acontece todo dia, como já me acontecia na linha vermelha do metro de SP, onde me apaixono por pernas de salto alto toda vez que subo as escadas. Eu tenho uma queda por paixões que me levam a lugar nenhum, principalmente aquelas em que a contraparte do negócio nem sequer sabe o meu nome. Mas com ela foi diferente. Foi na Gelateria il Cantagalli, uma sorveteria do lado da Fontana di Trevi. Ela trabalha lá. No primeiro dia, pedi que escolhesse o sorvete por mim. Tive só tempo de me apaixonar por seus olhos, verdes quase da cor do sorvete de menta.
(Continua...)

"Gelateria il Cantagalli" é um prelúdio do conto O Leão de Bronzeenviado a um
concurso em andamento
.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Diário de viagens que não voltam – Primeira nota

28 de setembro de 2013
Via Cipriano Menente, 16,
05018 - Orvieto TR, Itália
Horário: Aberto hoje
12:30 – 14:30, 19:30 – 22:30

Em Orvieto, num restaurante chamado La Palomba, havia ao lado da minha mesa um casal comandado por um diretor invisível. A mulher, uma asiática cujo rosto assimétrico e carrancudo carregava um tom muito avermelhado, parecia ter recebido instruções severas para fazer as piores caretas possíveis toda vez que mastigasse; o homem, ator competente, lançava sobre a mesa um ar de dominação, tinha o olhar cravado no movimento dos talheres da mulher, como se a conferir se eles eram usados da forma correta. Tal qual um cachorro ao pé da mesa, ele também observava o trajeto da comida levada do prato à boca da mulher. Os ombros dele eram largos, seu pescoço grosso e o cenho irreversivelmente franzido. Era um tipo caucasiano original da fábrica nórdica dos vikings modernos (vikings modernos, pelo dicionário Houaiss: indivíduo adestrado aos modos cavalheirescos da entressafra de homens-não-mais-tão-machistas-mas-ainda-avessos-a-algum-direito-da-mulher).
Eles dividiram um antepasto de berinjela à italiana, depois cada um teve seu espaguete ao pomodoro e, por último, uma carne com legumes (sim, eu fiquei prestando atenção em tudo o que eles comeram). Cada prato foi regado à vinho, o vinho da casa, que a garçonete garantiu ser soft. A asiática terminou de comer antes do viking moderno, que começou a dar sinais hostis...
O diretor que não estava ali queria tirar deles o retrato perfeito daquele tipo de relacionamento que, quando vemos na rua, desperta perguntas do tipo: o que essas pessoas conversam quando enfim abrem a boca? Por que estão juntas? O silêncio permanente no jantar e o estranho modo como ele a vigiava sem que ela, em momento algum, lhe dirigisse um mísero olhar, já tinha sido o suficiente para estranharmos o casal, mas ele foi além. Quando pareceu satisfeita, ela retirou o guardanapo do colo e se ajeitou melhor na cadeira. Ele, que não havia dado cabo da carne nem dos legumes, empurrou o próprio prato até deixá-lo à frente dela. Não disse coisa alguma e ficou olhando-a. Havia muita raiva ali, não me assustaria se ele ou ela se jogasse sobre a mesa, os braços estendidos até a jugular do outro.
Ele comunicou no silêncio tudo o que ela talvez entendesse melhor do que eu, pois ela se ajeitou na cadeira e acatou a ordem passada. Começou a partir a carne que restara no prato do marido, levando desinteressadamente cada garfada à boca. Seu rosto ficou ainda mais vermelho, talvez devido ao álcool, talvez irritada. Ela olhava para o nada entre a sua mesa e a minha. Foi quando notei seus olhos brilharem sutilmente, decerto lacrimejando, e decidi que era importante começar a anotar aquela cena toda.

O corpo dele inclinou-se um pouco sobre a mesa, os ombros precipitaram-se, uma mera postura capaz de reduzi-la ainda mais. A mulher não acumulou lágrimas o suficiente para que escorressem, a emoção estagnou-se e ela continuou a engolir a carne como se engolisse pedras.

Baixo relevo na fachada da Catedral de Orvieto

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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Entre o Muro e a Imaginação

Tudo seria mais fácil se eu me interessasse por menos coisas, se eu tivesse um gosto limitado a gêneros específicos. Isso vale para a música, para o cinema e para a literatura. Estou sempre aberto a dar uma chance ao que escuto, ao que vejo e leio. A consequência disso é que gosto das fantasias de Rowling e da Cor da Magia de Terry Pratchettt tanto quanto gosto da desconstrução bíblica de Caim e das inverossímeis Intermitências da Morte. Amo a ficção histórica de Susanna Clarke e venero o ego implodido de Arturo Bandini em seu caminho a Los Angeles; as memórias biográficas de Hitch-22 me fascinam não menos que a detalhada biografia do Universo, de John Gribbin. Quem primeiro me fez chorar diante do papel foi o Casmurro de Machado, o último foi o sonhador Dominic Molise, no inverno mais frio de John Fante.





Quando entro numa livraria, a sensação é desesperadora. Toda e qualquer seção tem pelo menos cinco livros que eu gostaria de ler. Quando saio sem comprar nenhum, sinto que ignorei uma grande parcela de conhecimento imprescindível. Quando saio tendo comprado alguns, trago-os pra casa e eles têm de entrar imediatamente na fila de livros a serem lidos, posicionados sobre as pilhas que já acumulo há anos por falta de uma estante grande em que eu possa guardar todos devidamente. A quantidade que consigo ler por mês é menor do que a quantidade que adquiro nesse mesmo tempo. Seria uma compulsão saudável se o ano inteiro fosse feito de férias. Agravante da falta de tempo para ler é a minha necessidade de dedicar um tempo diário para a escrita, seja acadêmica ou ficcional. Contudo, recentemente, escrevendo um conto chamado Alfred e a Estante, descobri que o desespero que sinto ao entrar numa grande livraria diz respeito não à quantidade exorbitante de livros que ainda devo ler, mas à aparente ausência de vazios. Parece já existir ali tudo o que precisaria ser dito, além de réplicas e tréplicas dos milhares de livros que dialogam com o conteúdo anteriormente lido por seus autores. Com um pouco de suspensão do ego, qualquer um pode acabar acreditando que não há lacuna nas estantes. O vazio, porém, é onde a mente opera, uma ausência na estante é o que ventila a reflexão.


Jorge Luis Borges
Ao pisar numa Livraria Cultura como a do Conjunto Nacional, em São Paulo, rodeia a minha cabeça a mesma sensação angustiante que A Biblioteca de Babel de Borges me proporcionou. Avisto cada seção de estantes e imagino um mundo incongruente de argumentos distintos, regidos por individualidades autorais conflituosas. Uma multidão de músicos a tocarem partituras diferentes.
A sinfonia desorquestrada de dizeres pode enlouquecer quando inocentemente se imagina haver um meio de ouvir a todos, de ordená-los na memória e conduzi-los com a batuta que é o lápis. Pois é com ele que se harmoniza a gritaria das estantes, com ele que se esquece do vertiginoso infinito de vozes.
Muitos dão conta das duas tarefas, a de reger e a de compor dizeres. São os chamados polímatas; indivíduos que estudam ou que conhecem muitas ciências. Umberto Eco, em um debate com a escritora Susan Sontag, assumiu que essa era a sua maior ambição, tornar-se um polímata. É evidente que ele parece chegar muito próximo disso, assim como o próprio Borges.

Umberto Eco entre parte de sua coleção de mais de 50 mil livros
Borges, porém, venerava o conceito de infinito e via a poesia como mantenedora de uma distância fundamental entre os saberes concretos e os saberes da palavra imaginada pela arte. Contrário a isso, um polímata só é pleno em seus anseios ao entender o saber como finito, abarcável. A palavra polymathia teria sido usada por Heráclito para criticar a natureza superficial de se abraçar mais do que se pode alcançar. Semelhante foi a resposta de Sontag naquele debate com Eco: ela o lembrou que o polímata é quem se interessa por tudo e por nada mais. Um apaixonado pelas paisagens, cego por tudo que tenta enxergar ao mesmo tempo.

Esse nada mais é, para mim, o que me permite a inocência de compor longe da gritaria. É um vazio na estante, abrindo espaço para os sopros que precisam correr daqui pra lá.
Quando a estante está completa, o homem está preso nela.
Inspirado nisso, nasceu Alfred e a Estante. É um conto longo para o blog (pouco mais de 4 mil palavras), e por isso trago aqui apenas uma parte, que espero servir para despertar o desejo de continuarem a leitura:

__________________________

Olho, de M. C. Escher

Alfred e a Estante


Por muito tempo eu sonhei com uma estante grande o suficiente para guardar todos os livros que adquiri ao longo de mais de vinte anos de leitura e pesquisas acadêmicas. No auge da minha compulsão, quando havia tempo de sobra, eu costumava ler um livro a cada dois dias. Grande parte dessa leitura se deve ao fato de que cursei Letras. Conquistei meu mestrado há um ano e agora estou desenvolvendo um projeto de doutorado centrado nas formas de representação do infinito. A ideia é colher respostas em Murakami e Kafka, tirando proveito também de análises sobre algumas imagens de Escher – o que minha orientadora acredita ser impossível conciliar com análises literárias. A pesquisa parte da hipótese de que o infinito é uma invenção humana, um atalho inconclusivo figurado pelo cérebro para findar a sua incapacidade de compreender grandes e ínfimas extensões temporais e espaciais. Eu poderia divagar sobre o que venho pensando para essa tese, afinal, como todo pesquisador, tenho um vício incurável por falar e falar sem chegar logo ao que quero dizer, então ficarei calado quanto a isso. Resolvi escrever-lhe por razões mais importantes. E, para ser sincero, o que farei ou não sobre a hipótese da tese… nem eu ainda sei dizer direito. A ideia nasceu de um instante imaginativo há alguns anos, quando li Sono, um conto de Murakami, e me senti orbitando uma única imagem durante toda a leitura. O conflito da personagem que torna-se permanentemente incapaz de dormir fez-me lembrar da gravura intitulada “Olho”, de Escher. Dali ao fim da leitura, não consegui mais deixar de ver aquele olho em cada palavra. Desde então, sempre ao ler as palavras do escritor japonês, lembro-me de outras gravuras de Escher. O fato é que precisei contar isso tudo por causa da minha nova estante. Com ela ocupei uma parede inteira do meu escritório, de modo que o transformei na minha biblioteca particular, cuja única parede livre, em frente à estante, adornei com uma enorme tela do Olho de Escher.
Antes dessa estante, eu poderia olhar para qualquer direção e encontrar pilhas de livros espalhados por toda a casa, dentro da sapateira, debaixo da cama, ocupando gavetas e disputando a tarefa de decoração com objetos da sala – pois em um canto eu empilhara uns tantos livros de tal modo que, atingindo sinuosas alturas, pareciam três estalagmites de papel criadas pela artista espanhola Alicia Martin em um de seus dias mais sóbrios. Pela casa eu imaginava ter uma soma aproximada de mais de mil livros. Quando precisei saber a medida das prateleiras, contei um por um e descobri serem quatrocentos e dezessete. Para ordená-los, separei-os por tema, pois percebi que se os arrumasse por ordem alfabética de autores forçaria parcerias no mínimo irônicas. Não me pareceu correto misturar línguas distintas, nem colocar Murakami ao lado de Maomé. Como em qualquer biblioteca, utilizei uma prateleira para dispor apenas livros de religião, outras para ciência, literatura e assim por diante.
Na noite em que guardei todos os livros, sentei-me orgulhoso no sofá diante da estante e dediquei uma taça de vinho à ordem que eu finalmente conseguira dar a tudo. Ainda estava fresca na memória a disposição de cada uma das prateleiras quando, no dia seguinte, voltei à biblioteca para admirar os livros e dei-me conta de um vazio na terceira prateleira, de baixo para cima, ao centro da estante, onde eu havia enfileirado apenas os livros que eu ainda não lera. Eu tinha plena certeza de que não restara nenhum espaço ali na noite anterior, muito menos uma lacuna de três ou quatro centímetros que agora separava O Muro de A Imaginação, este último pendendo para a esquerda, apoiado no outro. Não me lembrava de ter retirado nenhum dali para uma leitura antes de dormir, mas mesmo assim comecei a procurá-lo. Nada havia dentro das caixas que eu usara para transportá-los, nem em meu quarto, ou no banheiro, tampouco na sapateira ou debaixo da cama. Fui inspecionar também o andar debaixo, embora eu não tivesse descido depois que fui buscar o vinho. Nada na sala e na cozinha.
Estava faminto, então tive de parar e dar vez ao café da manhã. Eu haveria de me lembrar onde pusera o livro depois de aquietar o estômago.
Enquanto comia o cereal com as frutas vermelhas de todas as manhãs, tive a impressão de que havia sonhado algo importante, mas não conseguia resgatar nenhuma imagem; sentia apenas que envolvera amigos de faculdade que eu não via há muito tempo. Fui andando para os fundos, ainda comendo, e abri a porta para o quintal, onde pus-me sob o sol, dando colheradas, aquecendo o corpo e conferindo as poucas plantas do canteiro que eu chamava de meu jardim. Pousei a tigela do cereal num canto e reguei as plantas. Foi quando, não sei ao certo por onde, ele veio. O gato siamês que eu suspeitava ser de algum vizinho.
Cumprimentei-o, mas ele só quis saber de dirigir-se até a tigela, onde ainda restava um pouco de leite. Ele invadia minha casa religiosamente, nunca em outro horário que não aquele, esgueirava-se pelos vasos de plantas e ia deitar-se majestoso sobre as placas de ardósia que eu comprara para uma reforma no quintal, que acabara nunca realizando. Antes de se deitar, ele chegou à tigela, pareceu cheirá-la para beber, mas, desgostoso, o que fez foi dar um tapa preciso, de baixo para cima, fazendo a tigela virar e derramar o leite. Satisfeito com a sujeira, deitou-se na ardósia e começou o transe absoluto que era olhar para mim. Fitava-me cheio de argumentos sobre algum tópico que eu adoraria saber qual era, pois, como de costume, tamanha era a reprovação em seu olhar que só me restava concluir que ele tinha muitas razões para me julgar e, mais do que isso, que eu haveria de me envergonhar e tomar conhecimento imediato de uma falha minha, acatando seu julgamento sem relutar. No entanto, nessa manhã, seu olhar crítico não durou muito, parecia ansioso, preocupado em resolver alguma questão que era tanto minha quanto sua; balançava o rabo não cadenciadamente, mas em arroubos inadvertidos, como se lutasse com os segundos até o momento em que não aguentaria mais o silêncio e me diria aquilo que eu precisava ouvir.
“Bom dia para você também, Alfred.”
Eu lhe dera esse nome e ele sempre aparentou gostar, miando ao ouví-lo, mas dessa vez permaneceu quieto.
“Alfred?” Nada. “Bem, hoje eu gostaria de lhe pedir que fosse mais direto ao assunto. Quero usar meu primeiro dia de folga para alguma coisa mais prazerosa do que ser medido por suas ortodoxias.”
Eu puxei uma cadeira e me sentei bem em frente a ele. Ficamos alguns minutos nos observando, até eu perceber que podia fazer algo na sua companhia. Fui buscar meu caderno na sala e anotei ali algumas ideias sobre minha linha de raciocínio para a tese. Eu não havia escrito muito, quando Alfred miou baixinho.
“Não estou te ignorando. Peguei isso aqui justamente para anotar tudo o que você tiver pra hoje”. Ele gostou dessa ideia, pois mexeu o rabo com calma e se ajeitou mais confortavelmente na ardósia, como se dissesse: “Pois comecemos. O que precisa ficar bem claro, de uma vez por todas, é o seguinte…”
Mas é claro que não falou nada. Ele não seria capaz de começar uma frase indo tão direto ao ponto. Embora lacônico, sua oratória haveria de ser tão verbosa quanto os rascunhos de textos acadêmicos e literários que eu frequentemente lia para ele, e que certamente o influenciavam.
Então, de repente, lembrei-me que antes de tudo aquilo eu estava procurando pelo livro que sumira da estante. Voltei pra dentro de casa.
Comecei a cogitar a possibilidade de ter me enganado em achar que a prateleira ficara cheia. Decidi contar todos os livros da estante. Contei duas vezes. Eram quatrocentos e dezesseis. Um a menos.
Agachei-me para arrumar os livros e, como se ao me aproximar do problema eu pudesse entendê-lo melhor, olhei entre eles, onde o bendito estivera até a noite anterior. Caí para trás, tamanho o susto que levei. Recoloquei-me de cócoras e tornei a olhar o vão, para ter certeza de que vira o que vi.
Continua...

Essas foram as primeiras 1370 palavras. Gostaram da leitura? Adquiram o conto completo no link abaixo:


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