Em meados de 2009, eu havia acabado de escrever um romance
policial – que guardo na gaveta pois sei demais de seus defeitos. Foi depois de
rejeitar esse primeiro livro que me dei conta de que eu havia mudado meu jeito
de pensar. E de escrever também, é claro. Tive a ideia para
uma nova estória. No antigo Espaço Aono da Av. Brigadeiro Luís Antônio, escrevi
as primeiras palavras do que depois se tornou o prólogo de O deserto dos meus olhos. Esse lugar era um spa em que minha mãe costumava ocupar uma grande sala para as reuniões semanais do seu
grupo de discussão do livro Um Curso em Milagres. Eu a acompanhava sempre, pois
prezava pelo silêncio de uma das salas de espera do local. O único barulho
eventual era o telefone seguido da voz da Kelma, a secretária que trabalhava na sala ao lado, e a
única rara interrupção pessoal era a da Val, a faxineira que gostava de vir me dar beijos
e dizer palavras de encorajamento à escrita; ela sabia que eu escrevia ficção,
eu lhe contara depois de ela ter questionado se eu não me sentia sozinho ali,
escrevendo.
"Jovem da sua idade não pode ficar parado desse jeito não", ela disse uma vez e eu anotei suas palavras. "Velho é que fica parado querendo morrer. Vê se anda de lá pra cá, bebe uma água."
Algumas pessoas veem a solidão como uma prisão, parecia à Val que escrever era um agravante da solidão, um atestado. Como se meu silêncio com o papel só
pudesse significar tristeza. Eu lhe dizia que era
o contrário. “Eu gosto bastante de escrever”, devo ter dito algo simples assim, não lembro. A prisão, afinal, está nos olhos, que vez ou outra nos fazem
acreditar que só podemos ver aquilo que de fato nos cerca. É a prisão da mente
sem imaginação. O problema parece ser então outro: quem
encontramos em nós quando estamos sozinhos? Há quem se desespere, há quem se
acalme, há quem enlouqueça.
Crescer em uma casa de psicólogas é garantia de ser exposto a algumas palavras especiais. Pode parecer simples agora, mas quando eu era pequeno as palavras inconsciente e ego causaram um impacto notável na forma como eu enxergava os meus amigos. Embora eu comemore efusivo todas as exposições que tive aos estudos de minha irmã e minha mãe, é claro que isso não se trata de um privilégio de casas de psicólogos. Tratava-se de um adiantamento de algumas verdades acessíveis a qualquer um que olhe para o humano. O que acontecia comigo é que minha mãe, além de psicoterapeuta, é também professora de Meditação Transcendental, da qual me tornei praticante desde os 5 anos. Por isso tive contato com uma ferramenta especial: conhecer-me enquanto eu ainda tinha pouco a descobrir em mim mesmo. Esse farol voltado para uma identidade em formação resultava, vejo agora, entre outras coisas, em uma benevolência prematura. Talvez o perdão já fosse ingênito em mim, mas diariamente aprendi a observar a falta de controle que as pessoas têm sobre os próprios atos. Eu podia chegar em casa irritado e triste por ser xingado por um menino mais velho, ou por ser chamado de raquítico por uma colega, mas logo ouvia de minha mãe os motivos que levam alguém a apontar os defeitos de outra pessoa. Eu voltava no dia seguinte preparado para perceber a fraqueza daqueles que desejavam me diminuir. O inconsciente e o ego por trás das ações não eram apenas duas palavras a mais no meu vocabulário.
Minha mãe fez ainda a maior contribuição para o meu despertar para as palavras, muito antes que eu pudesse pensar em escrever alguma coisa. Ela costumava anotar o que eu dizia sobre qualquer coisa – vida, morte, alma, espírito, deuses, paraíso, céu, sol e planetas. Ela garantia que eram frases bonitas, profundas. Fossem ou não frases boas, o maior valor daquele ato era mostrar a uma criança que toda ideia pode ser registrada, palavra por palavra. No dia seguinte, eu lia junto com ela o que eu havia falado, sem me lembrar como eu pensara naquilo. Era natural então, que eu logo passasse a prestar mais atenção na formação de cada pensamento, tornei-me um vigia das frases que surgiam na mente. Com minha mãe aprendi a pensar, porque aprendi a ver o meu pensamento desmontado em riscos de grafite ou tinta no papel.
Maharishi Mahesh Yogi e os Beatles. Ao fundo, o quadro que minha mãe também tem em seu consultório; diante dele, aprendemos todos a meditar. |
Hoje em dia eu mesmo empunho o lápis e a caneta que ela usava por mim. Prefiro escrever à mão toda primeira ideia. Quando tenho um rascunho longo, venho então para a frente do computador e trabalho em melhorias. Embora o alicerce do texto esteja todo lá, visível no rascunho, o resultado final normalmente esconde a estrutura original e apresenta um corpo inédito até para mim. Quando me surpreendo e mal enxergo a estrutura, é quando me dou por satisfeito. A mágica que enxergo na escrita, apreendi lendo. Mas a mágica que tento empreender ao escrever, descubro a cada dia, a cada palavra.
Cadernos dos últimos anos |
Não só em homenagem à minha mãe escrevo, mas também ao meu avô materno, que amava sua escrivaninha – minha mãe me conta que ninguém podia mexer nela e ele lá se sentava religiosamente. É dito que seu maior sonho era viajar pelo mundo e enviar cartas contando sobre os países que visitava. Vejo sua escrivaninha como a passagem de ida e volta para qualquer lugar que quisesse imaginar. Se o dinheiro não podia levá-lo até esses lugares, talvez algumas palavras pudessem fazê-lo.
Tive a felicidade de conhecer Praga pessoalmente e garantir maior fidelidade à narrativa dos capítulos de O deserto dos meus olhos que se passam lá, mas o mais curioso é que, bem antes que eu pudesse imaginar que um dia viajaria à República Tcheca, as palavras que usei para transportar meus personagens anteciparam coisas que eu depois vivi ali. Escrevi detalhes impossíveis de se saber antes que eu visse Praga pessoalmente. Em 2010, por exemplo, imaginei a Igreja de Tyn com a porta lateral fechada e o interior em reforma, e encontrei essa mesma porta fechada para reforma em 2013. Escrevi sobre a Caverna Mágica no Monte Petrin e seu anfitrião excêntrico; anos depois o encontrei, por sorte, num momento fortuito, enquanto ele saía de sua toca, ainda de pijamas, avesso a falar com alguém. Tive de insistir por uma foto.
Reon Argondian e eu, em sua Caverna Mágica no Monte Petrin. |
Durante a escrita de O deserto dos meus olhos, eu havia começado a assistir à série Cosmos, a original com Carl
Sagan, dando vazão a uma paixão que eu tinha desde pequeno: o Universo. Era o tema de um dos
livros que meu pai tirou de sua biblioteca particular para me dar, quando eu devia
ter 12 ou 13 anos. Astronomia, de Joachim Herrmann. E eu adorava abri-lo na
esperança de entender alguma coisa que estava escrita ali, querendo me tornar
tão inteligente quanto o meu pai, que em mais de uma ocasião tentara me
explicar a Teoria da Relatividade de Einstein. Pouco entendimento eu alcançava,
tanto da teoria como do livro de Hermann, mas as imagens que a explicação de
meu pai e o livro suscitavam me fascinavam. Com Carl Sagan eu sentia poder
chegar bem perto de entender o que minha paixão até então apenas fantasiava,
com ele conheci melhor o astrônomo Johannes Kepler e apreendi conceitos
importantíssimos para a organização da minha percepção racional do mundo e,
principalmente, do lugar do homem no Universo. Com ele me atentei à brevidade das existências, de modo semelhante ao que encontrei na Impermanência do budismo. São razões para eu voltar sempre às palavras, certo de que elas representam aquele refúgio capaz de alongar os instantes e preservar parte do que é provisório.
Nós somos como borboletas, que vibram por um dia e pensam que é para sempre.
Carl Sagan
Carl Sagan e seu primeiro filho |
Foi de alguma forma aflorando minhas duas grandes paixões – o espírito da meditação e da psicologia de minha mãe e o universo da astronomia de meu pai –, que
cheguei à ideia de levar meu protagonista não apenas a um templo budista, mas
também até a casa de Kepler, em Praga. Se eu pudesse colocar na ficção aquilo que eu mais amasse, a escrita me
levaria naturalmente à descoberta íntima e verossímil de um personagem. Ao descobri-lo, segui-o, apesar de ele não parecer falar da minha terra. Segui-o pois ele falava de suas paixões, temores e culpas. E é para isso que qualquer um escreve, para afastar o medo e iluminar o humano, à parte de fronteiras geográficas, aquele humano desterrado por não lembrar ao certo sua origem.
Ganesh, a encarnação corporal do Cosmos. Um dos meus amuletos para a escrita, precioso presente de Larissa, querida como um membro da minha família. |
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Ilustração da capa (Raven Moon) cedida pelo artista canadense, Lance Weisser. Acesse o blog do pintor aqui: http://weisserwatercolours.com/ |
PRÓLOGO
Devo ser sincero logo de início,
enquanto sua atenção ainda não me foi prometida, enquanto não posso traí-la.
Nem tudo o que contarei nas próximas páginas aconteceu realmente comigo. As
pessoas e os lugares que garantirei ter conhecido fazem parte de uma série de
inventos que só se mostraram assim no dia em que dei cabo de cada uma das
minhas companhias. As descobertas que guardo não me perturbam; aquecem-me,
mantêm-me alerta. Há um limite para qualquer mente submetida ao que fui
submetido, mas o único arquiteto daquilo
que desaba sobre ti és tu mesmo, como ele me disse no fim de tudo. É
preciso sobreviver às próprias mortes, ao sufocamento de si mesmo na névoa
venenosa do caos e do desamparo, névoa que vemos partir do mundo e dos supostos
perpetradores do nosso sofrimento, mas da qual só nos libertamos quando nos
descobrimos seu único feitor. Só deixarás
de temer tudo o que conheces quando conheceres tudo o que temes. E o temor,
o medo, por sua vez, é correlato direto da culpa. Culpa do que se fez e do que
não se fez, do que se pensa ter feito e do que se pensa ter deixado de fazer.
Somos muito criativos quando a tarefa é nos culpar, seja um louco como eu ou
não. Mas, por ora, não me delongarei quanto a essas diferenciações; só me
explico quando temo ser julgado, e não creio que serei julgado tão cedo.
Estou longe do estado purificado dos
monges budistas com quem pude conviver, mas me vejo limpo o suficiente para
conseguir voltar a meditar diariamente. Para o louco, existe um momento em que
a loucura deixa de ser corriqueira, e a sanidade, amedrontadora. Basta que ele
viva o bastante. É certo que poucos puderam sobreviver a si próprios pelo tempo
necessário para o despertar, e da maioria que o fez não se pode dizer que seja
muito falante… ou paciente para lidar com o papel. Pois eu o serei. Contarei
sobre todos os meus dias, sobre os lugares e as pessoas, sobre todas as
inverdades que me levaram à sanidade.
Não
faltaram indícios de que nada daquilo era real. Afora todas as esquisitices e
improbabilidades, as súbitas disposições e indisposições, ainda havia o fato de
que toda vez que essa minha Arcádia, suspensa sobre tudo, me provocava o medo
da morte ou o medo da felicidade, eu estava destinado a abrir os olhos num
imaginário distinto do anterior. Conforme acontecia, demorei a tomar ciência de
que havia como escapar dos meus próprios mecanismos. Portanto, no princípio,
ponto em que jamais me questionaria sobre a falta de continuidade do que
ocorrera no dia anterior, pareceu-me muitíssimo natural abrir os olhos e me
encontrar na Espanha do século dezenove, em meio a acontecimentos talvez
históricos – digo talvez, pois desde minha libertação não tive tempo de ir a
alguma biblioteca conferir os fatos…
É
uma mentira, essa frase acima… Prometi ser sincero e não quebrarei a promessa
nas primeiras páginas. Não só tive tempo disponível, como bem poderia fazê-lo
agora, uma vez que escrevo estas palavras sentado a uma mesa da Biblioteca
Estadual de Berlim. Eu poderia ir à procura do livro que me sanasse a dúvida,
mas tenho urgência em falar-lhe. O que menos importa agora, tanto para mim
quanto para você, é se Juan, Domingo, Francisco e Ramón existiram ou se eu
realmente tive participação no destronamento da rainha Isabel II.
(Continua...)
(Continua...)