sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Diário de viagens que não voltam – Primeira nota

28 de setembro de 2013
Via Cipriano Menente, 16,
05018 - Orvieto TR, Itália
Horário: Aberto hoje
12:30 – 14:30, 19:30 – 22:30

Em Orvieto, num restaurante chamado La Palomba, havia ao lado da minha mesa um casal comandado por um diretor invisível. A mulher, uma asiática cujo rosto assimétrico e carrancudo carregava um tom muito avermelhado, parecia ter recebido instruções severas para fazer as piores caretas possíveis toda vez que mastigasse; o homem, ator competente, lançava sobre a mesa um ar de dominação, tinha o olhar cravado no movimento dos talheres da mulher, como se a conferir se eles eram usados da forma correta. Tal qual um cachorro ao pé da mesa, ele também observava o trajeto da comida levada do prato à boca da mulher. Os ombros dele eram largos, seu pescoço grosso e o cenho irreversivelmente franzido. Era um tipo caucasiano original da fábrica nórdica dos vikings modernos (vikings modernos, pelo dicionário Houaiss: indivíduo adestrado aos modos cavalheirescos da entressafra de homens-não-mais-tão-machistas-mas-ainda-avessos-a-algum-direito-da-mulher).
Eles dividiram um antepasto de berinjela à italiana, depois cada um teve seu espaguete ao pomodoro e, por último, uma carne com legumes (sim, eu fiquei prestando atenção em tudo o que eles comeram). Cada prato foi regado à vinho, o vinho da casa, que a garçonete garantiu ser soft. A asiática terminou de comer antes do viking moderno, que começou a dar sinais hostis...
O diretor que não estava ali queria tirar deles o retrato perfeito daquele tipo de relacionamento que, quando vemos na rua, desperta perguntas do tipo: o que essas pessoas conversam quando enfim abrem a boca? Por que estão juntas? O silêncio permanente no jantar e o estranho modo como ele a vigiava sem que ela, em momento algum, lhe dirigisse um mísero olhar, já tinha sido o suficiente para estranharmos o casal, mas ele foi além. Quando pareceu satisfeita, ela retirou o guardanapo do colo e se ajeitou melhor na cadeira. Ele, que não havia dado cabo da carne nem dos legumes, empurrou o próprio prato até deixá-lo à frente dela. Não disse coisa alguma e ficou olhando-a. Havia muita raiva ali, não me assustaria se ele ou ela se jogasse sobre a mesa, os braços estendidos até a jugular do outro.
Ele comunicou no silêncio tudo o que ela talvez entendesse melhor do que eu, pois ela se ajeitou na cadeira e acatou a ordem passada. Começou a partir a carne que restara no prato do marido, levando desinteressadamente cada garfada à boca. Seu rosto ficou ainda mais vermelho, talvez devido ao álcool, talvez irritada. Ela olhava para o nada entre a sua mesa e a minha. Foi quando notei seus olhos brilharem sutilmente, decerto lacrimejando, e decidi que era importante começar a anotar aquela cena toda.

O corpo dele inclinou-se um pouco sobre a mesa, os ombros precipitaram-se, uma mera postura capaz de reduzi-la ainda mais. A mulher não acumulou lágrimas o suficiente para que escorressem, a emoção estagnou-se e ela continuou a engolir a carne como se engolisse pedras.

Baixo relevo na fachada da Catedral de Orvieto

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2 comentários:

  1. Não importa o motivo, nem o que aconteceu, senti toda a dor dela!

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  2. Brilhante! Já engoli muita pedra nessa vida! As fotos são lindas!

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