Antes nos pediam que deixássemos recados, scraps,
diretamente no espaço que era do outro. Ou depoimentos. Era preciso ir lá,
atrás da página alheia e dizer ao outro tudo o que tínhamos de melhor para
dizer. Era imprescindível ter um destinatário bem definido a cada mensagem
enviada. Algo muito semelhante ao cotidiano da rua. Se eu não firmar um
destinatário e sair simplesmente dizendo ao vento, certamente ninguém escutará.
Nem que eu grite! Se gritar na Paulista, serei visto como louco. No orkut, os
loucos apareciam menos, pois não podiam gritar tanto, tinham que falar e
esperar a resposta. Uma manifestação mais autocentrada veio depois, ainda que
limitada, quando atualizaram o layout e se tornou possível postar algumas
coisas no perfil, graças àquela longa edição: vídeos numa aba, fotos noutra. E
as pessoas também davam um jeito de caprichar na edição do 'profile', para
dizer ao mundo quem elas eram; nisso, enchiam com mil informações a opção
'about me'; ali estava a bíblia pessoal de cada um. Citações de livros, letras
de música, gírias, palavras propositalmente digitadas erradas, pois era moda
ser assim: sabidamente errado. E na falta de emojis, bastavam os u.u, -.-, xD~,
^o^, ;D. Tudo aquilo descrevia bem nosso jeito inocente de ver as coisas. E de
certa maneira, nos impedia de descrever aquelas outras partes de nós mesmos que
talvez não fossem tão publicáveis.
Feliz ou infelizmente, tenho uma memória bem indexada.
Ao menos, sobre as coisas antigas (minha memória é falha para os detalhes da
ordem do dia, coisas que meu inconsciente apaga sem me avisar). Consigo acessar
os anos, por exemplo, 2004, 2005, 2006 e 2007, e selecionar o que acontecia
aqui e ali, comigo e no mundo (diminuta parcela do mundo que eu conhecia).
Lembro do que diziam alguns perfis de amigos – alguns dos quais agora estão
aqui no facebook. Lembro também de mim. Nessa época eu era emo. Odiava que me
chamassem de emo. E eu dizia que eu não era emo!, especialmente a quem queria
usar da palavra como xingamento (O Unilson era o único que sabia usar essa
palavra sem ser pejorativo, ele falava e eu não me sentia ofendido). Mas
olhando pra trás, agora sei que eu só podia me enquadrar naquela descrição de
emo mesmo, devido à aparência que eu escolhia ter e às músicas que eu dizia
gostar. Os cabelos alisados, caídos até a ponta do nariz; munhequeiras pretas,
batucando New Found Glory e My Chemical Romance na mesa com o Suguita. Antes de
ser emo, eu me achava bem feio e queria ficar bonito. Ser emo foi o jeito que
eu encontrei pra ser estiloso e ter algum sucesso com alguma menina. Embora
possa se argumentar com rigor, e razão, que esse estilo tenha me deixado mais
feio do que eu já imaginava ser!
Bom, digo tudo isso só para lembrar do ambiente do
orkut, de quando seguir mais de mil comunidades era motivo de orgulho:
"olhem só quantas coisas eu aprecio! Eu sou uma pessoa com muitos gostos,
eu faço parte de muitas comunidades e cada uma delas me representa. Em algumas
delas eu até posto e converso com pessoas de todo o Brasil! Outras, eu mesmo
criei."
Não tive myspace, pulei direto para o facebook em
2008. E, se não me engano, naquela época a página inicial nos perguntava:
"o que você está fazendo agora?", antes de passar à intrometida e
grave questão de hoje: "No que você está pensando, Leon?" Esta é uma
pergunta que não tinha no orkut, embora todas as ações desempenhadas lá
diluíssem essa questão e tudo ficasse subentendido. No facebook, porém, não!, o
facebook não quer rodear o cerne da coisa e atrasar o verdadeiro espetáculo do
humano público. O facebook se apresenta logo de cara, sem rodeios:
"fale-nos o que você pensa, coloque pra fora isso que, em tese, deveria
ser seu e só seu; publique o privado!" O twitter percebeu esse mesmo valor
de exteriorização e construiu-se em torno do pensamento como acontecimento,
como coisa curta: a opinião reduzida e redutora, como aforismo ruim.
Antes que nos déssemos conta, deixamos o campo seguro
dos scraps para trás e adentramos o belíssimo novo mundo das convicções pessoais
e do textão narrativo, como este, que nem todos lerão, pois não se define um
destinatário, não se convoca o outro. É o mundo em que publicamos o privado sem
vergonha alguma do que temos a dizer aos outros, pois o pensamento agora não
necessita de amadurecimento e dúvida; não! Ele pode (e passa a dever) ser
entregue como opinião formada. E ai daquele que ainda não formou uma opinião.
Como assim você não tem opinião?! Não está convicto de que você DEVE pensar
alguma coisa? Não vai nos dizer o que está aí dentro? Vamos, diga aos seus
amigos, eles estão esperando. Eles esperam para poder decidir se você pensa
como eles, se você É como eles, se seu pensamento encaixa-se nos deles. E
pronto, num piscar de uma década, o pensamento e a opinião são formulações públicas,
numa construção permanentemente interrompida. Obra interditada! É o abandono do
que viria a ser. E quem lhe entrega o caminho abandonado de sua opinião? É o
outro, que já percorreu o caminho e está esperando para saber se você seguirá
por onde ele lhe assegura ser o ideal. No entanto, nem ele, nem o outro a quem
ele deu ouvidos antes de se dirigir a você, desbravaram este caminho. Ninguém
construiu essa coisa abandonada. E ninguém mais consegue saber quem abriu a
mata e deixou a trilha ali, bonitinha, para você passar e chegar a lugar
nenhum.
Ai de quem tem dúvida sobre o histórico de cada
caminho!
A verdade, que sempre esteve na dúvida, agora está
apenas na certeza. Está no dizer pelo dizer. Se fulano disse, está dito. E já é
verdade-certeza. Verdade esta que a pessoa, no fundo, sabe se tratar de uma
certeza que é de um outro. Mas isso não impede que todos se sintam donos.
Aliás, ficam muitíssimo confortáveis em se fazerem donos do que é do outro.
E, assim, se coloca o inadmissível: a maioria de nós é inteiramente
incapaz de justificar suas opiniões. E digo justificar naquele sentido das
provas de história do Professor Valmir. Imagine se cada convicção e voto
orgulhoso fosse seguido da necessidade de uma justificativa bem dada, bem
formulada. Danou-se. Não seria possível enrolar, seria inaceitável não saber
definir o significado e as implicações de cada palavra utilizada em sua
justificativa. As respostas que sairiam dessa verdadeira obrigação (a da
explicação) seriam risíveis e reprovadas. Risíveis tanto quanto foram aqueles
textos que deixávamos, eu e você, no 'about me' do orkut. Em certa medida, como
o é risível este texto que publico agora – se voltar a lê-lo daqui a uma
década, será uma piada. Tão reprovável quanto querer ser mais bonito seguindo
aquela moda de 2004.