quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Cirandar


Chegar no dia seguinte é sempre esquecer um pouco do dia anterior. Isso todo mundo sabe. É fácil concordar. Sacrificamos nossa memória, é processo natural, fisiológico. Se não fossem as ferramentas da língua, não haveria jeito de contar direito estória nenhuma. Muito menos História. Ainda uso estória, é parte do que me recuso a esquecer. Língua-país-gente que não diferencia essas duas palavras, não tem História, nem estórias. Quero sonhar. Quem mais quer? Os monstros também sonham. Nossa monstruosidade é primeiro particular, mas é fenômeno útil quando toma corpo em grupo. Esse monstro que é feito de todos acorrenta a si mesmo, ri e chora, corre e se agarra, usa das próprias mãos como se fossem outras, contrárias ao desejo do corpo; trôpego, esse monstro, confunde progresso e retrocesso. Ele sobe a ladeira… até chegar lá embaixo, onde está aquela pedra enorme do castigo. Mas empurrar essa pedra e castigar-se como um digno mortal, essa é uma ideia que não passa pela cabeça do monstro. Pois ainda é criança e faz ciranda ao redor da pedra. Quer provar-se gigante. Imortal. Para tanto, que outro jeito haveria, senão devorando parte de sua própria natureza e ainda se achando vivo? À autofagia, o sacrifício é uma nobre sobrevivência. Passa a ser bonito cortar-se, salgar-se e largar-se triunfante sobre as labaredas. Parte do que fomos vira uma parte que já não é, e já não está, porque se queimou e se engoliu. E pra onde vai? Como diz Luiz Bras em sua pequena coleção de grandes horrores, o maior bem é tristonho, toda vida é sonho, e o calor do infinito mistério é coisa da vida mesmo, pois a vida é incêndio.




-







Carona

Não é raro ver uma formiga carregando um pedacinho de folha e, lá no alto, levemente agarrada à extremidade, outra formiga, pegando carona de volta pra casa. Mas a carona só nos parece ser assim, carona e não outra coisa, porque nós é que entendemos essa ideia de carona. A formiga que vai agarrada, nas alturas, certamente pegou a folha com a mesma intenção, com a mesma responsabilidade operária da outra formiga, que conseguiu se fazer dona temporária da folha que logo mais será de todo o formigueiro. Imagine o problema: talvez tenha ocorrido que, antes dessa formiga que com força carrega folha+carona, a outra, a da carona, já tivesse visto e abocanhado tal bem da natureza. Quem pegou antes, quem pegou depois, não sei, você não sabe, porque é difícil testemunhar o que aconteceu antes de começarmos a olhar; difícil julgar uma briga de seres tão parecidos entre si. E, afinal, quando esses seres se misturam, não é mais possível saber quem é quem; se essa não é aquela, e se aquela não é esta. O fato é que essa tal formiga, que vira e mexe pega carona; talvez ela seja iludida; talvez, por algum tempo, sinta que é ela mesma que carrega a folha, e não a outra. Que outra? A outra se esconde do outro lado da folha! Como vê-la? Como saber? O chão vai ficando pra trás, as pernas da formiga-de-carona se debatem no ar, como se ela mesma pisasse a terra. Quem vai traduzir a verdade e lhe dizer que não, que seus pés não tocam o chão? Talvez ela até saiba. Mas, diante de seus olhos-antenas, a folha fala mais alto, é seu motivo pois é sua. E só sua!
Eis que, de repente, não sei como, essa formiga se dá finalmente conta de que se agarrou na folha que já é da outra. Se voltar assim pra casa, de carona, terá traído sua missão.
– Ah, mas talvez ela não tenha se iludido, formigas se comunicam bem. E sempre concordam umas com as outras. Essa deve ser só mais uma cena da força da natureza em intuitiva disputa consigo mesma. E, lembre-se, “ilusão” é só palavra; como “carona”, é ideia nossa. E se for pra seguir nessa projeção, posso mesmo pensar que ela quis disputar pelo que era sabidamente do outro, e testar forças, resistir. A natureza selvagem, que também há de estar nelas, dormente, ameaçando em segredo sua comunidade perfeitamente equilibrada, essa natureza, selvagem como a nossa, de primatas, não aceitaria perder uma folha tão verdinha.

Bem, ilusão ou disputa, o fato é que, ao contrário de nós, essa formiga então desce da folha-carona – acabei de ver aqui no jardim –  e vai procurar em outra folha seu verdadeiro movimento.




terça-feira, 11 de setembro de 2018

A reveladora beleza da ilusão

Não teria sido possível resenhar Sidarta em um único vídeo, não neste formato de ensaio narrativo. A princípio, a ideia foi dividi-lo em três partes; 'Ausência', 'O véu de Maia' e 'O Tempo'. Durante a escrita do segundo vídeo, decidi que 'O tempo' ficaria melhor inserido em 'O véu de Maia', portanto esta recente é a junção, parte final da minha exploração da obra de Hermann Hesse. Ao fim do vídeo, o poema L’infinito, do italiano Giacomo Leopardi (na tradução de Haroldo de Campos e na voz de Tânia Maria Ramos Fernandes), dá ao tom da impermanência a convicção de um único Agora em que todos nós naufragamos – quem sabe um naufrágio doce, se soubermos sonhar como Leopardi e contemplar como Sidarta.




PARTE I - AUSÊNCIA - Hermann Hesse e Carlos Drummond de Andrade



PARTE II - O VÉU DE MAIA E O INFINITO - Giacomo Leopardi e Hermann Hesse


sábado, 4 de fevereiro de 2017

Quem é o mar?

Uma resenha nunca me fez tão bem quanto essa que vai ao ar hoje. Todo o processo, da leitura à pesquisa das imagens e das músicas, significou uma chance de lidar com a desesperança que me acompanhou ao retornar do Rio de Janeiro. Nos primeiros dias, antes de ler "No mar", eu só conseguia enxergar a ideia de derrota. Sentia como se houvesse encalhado. Acordaram em mim os sentimentos de descrença e medo, vindos daquela parte em nós que sempre prefere duvidar e não içar velas ao sonho.

 

Por isso, Toine Heijmans e suas 150 páginas de "No mar" serviram como antídoto. Era tudo que eu precisava encontrar na estante nesse momento.
Após a leitura, tive a grata surpresa de descobrir a existência da adaptação em filme, feita pelo diretor Marinus Groothof, para a TV holandesa NPO. Algumas partes do filme estão na resenha em vídeo. ("Op Zee" é o título original, e foi exibido no programa "One Night Stand" no dia 10 de janeiro de 2014. Para quem tiver interesse, o filme está disponível online, gratuitamente: http://onenightstand.ntr.nl/2014/08/21/op-zee/ )

Ao fim do vídeo, a leitura do poema "O mar", de Borges, é feita na voz de Tânia Fernandes, minha mãe.




terça-feira, 29 de novembro de 2016

Minha sombra cabe ali

No início de setembro, descobri sobre um concurso da Amazon, o Prêmio Kindle de Literatura. Apenas livros inéditos concorreriam e o vencedor seria publicado pela Editora Nova Fronteira.
O concurso estaria aberto até o dia 30/11.
Por não poder concorrer com O deserto dos meus olhos, coloquei em mente que escreveria um novo livro em menos de três meses.
A meta era finalizá-lo no dia 11/11 e ter algumas semanas para revisá-lo, antes da publicação.

Adquiri um ritmo de escrita inteiramente novo para mim. Por isso é que precisei colocar de lado, por ora, as resenhas do canal prelúdios, no YouTube. Conciliando a faculdade, minhas pesquisas e a escrita, revisitei uma cidadezinha que guardo no coração e produzi cerca de 3 mil palavras por dia. 


No início de novembro, um pouco atrasado, adentrei os capítulos finais... sempre os mais difíceis para mim. No dia 24 deste mês, terminei a escrita e dei início ao processo de releitura e revisão. Ao mesmo tempo, comecei a produzir a capa (ilustrada com uma pintura de meu sobrinho Bernardo de Azevedo Nonato, de apenas 11 meses de idade; em meu Instagram é possível ver o dia em que ele nos presenteou com sua arte).

Hoje o livro está pronto e publicado.


Minha sombra cabe ali é uma autoficção e nos conta sobre um retorno à cidade de Cristina, do interior do sul de Minas Gerais, onde, em minha infância, tive a breve convivência com meus avós paternos. O protagonista segue os meus passos e busca recolher lembranças que só poderiam despertar ali, no contato direto com o espaço revisitado. Nessa cidade, porém, há um segredo que ninguém ainda havia descoberto.





Esse romance foi publicado hoje, no dia 29/11, e está concorrendo ao Prêmio Kindle. A divulgação dos dez primeiros finalistas será muito em breve, no dia 12 de dezembro. Imagino que a avaliação final dependa da atenção que a obra puder chamar, entre tantas que estão concorrendo. O tempo é curto. Por isso, conto com a divulgação e, sobretudo, com a leitura e avaliação de vocês (por meio das estrelas da Amazon).
O livro está disponível para Kindle, por R$6,50, e gratuitamente para usuários do Kindle Unlimited. É possível lê-lo mesmo sem um aparelho Kindle; basta baixar o aplicativo para celulares, tablets, e também para PCs.
Farei um vídeo para os próximos dias, contando um pouco mais sobre isso tudo!
Obrigado. E boa leitura!

https://www.amazon.com.br/dp/B01NAC781P





quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O espaço nos fala

Onde está a essência inata de uma criança que foi privada da relação com o espaço, com a língua e com outras pessoas? Ela seria capaz de exercer algum poder de criação?

Habitar é nosso primeiro ato, habitamos antes de nascer, e quando encontramos o mundo exterior do lado de cá do ventre materno, o espaço é então nossa primeira descoberta. A casa é o que vem muito tempo depois, inventada. E está em sua arquitetura o mapa da alma que deseja recolher-se uma vez mais, continuar habitando, para voltar a entender o mundo por um interior.

A casa, com suas divisões, refúgios, segredos e fronteiras, é o ambiente que consagra os refúgios do próprio morador.

A beleza de plantarmos uma árvore ao lado da casa e vermos seu crescimento é um ato que unifica exterior e interior, ato que aguarda o dia em que essa mesma árvore quebrará a janela por onde nós tantas vezes nos pusemos a admirá-la. Assim é a nossa relação com o espaço. E, por isso, por somente assim enxergarmos o tempo, é nele, no espaço, em que confessamos nossos desejos pela permanência.

Em A poética do espaço (1957), Gaston Bachelard define essa relação de permanência da seguinte maneira:



"Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer "suspender" o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço."

___________________


Essa é a partida para o vídeo que vai ao ar hoje. Dando continuidade aos temas dos vídeos anteriores, da imaginação à linguagem, este explora o lugar do espaço na formação de nossa natureza humana:




Ao fim dele, uma surpresa especial: a leitura do poema é feita por Tânia Fernandes, minha mãe! E o poema, "Quintanices", é de Regina Dayeh, de seu belíssimo livro "Meu pai desenhava navios". Eis a transcrição:

"Segui teu conselho
abri uma janela

palavras

dançam nas ruas estreitas
pelas avenidas
grafitam nos muros
ocupam espaços
correm na areia

entre rios e pontes
entre vagas ideias
as letras as frases
escapam pulando
em cores

na boca
no sangue
na mão

chega o poema
e junto o poeta
e vem o convite,
à festa folia
brincar de poesia
os sons
toda a luz.
arejam a casa
alegram a casa

habitam em mim."


Publicado pela Miró Editorial, em 2013.

Regina Dayeh nasceu no Rio de Janeiro em 1954 e passou a infância e adolescência em Santos. Mudou-se para São Paulo, onde se formou em Direito no Largo de São Francisco, em 1977. Foi professora universitária de Direito Empresarial e é Assessora Jurídica do TRT-SP. Poeta e contista, "Meu pai desenhava navios" é seu primeiro livro de poesia.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

a tração

Quando a glória de nossos pais é cantada com versos de temor, quando suas dores lhes deram a luta e a redenção, é quando nos afiamos com uma nociva ironia: aprendemos a temer determinada coisa e a desejá-la ao mesmo tempo.
Se toda história cumpre seu papel quando nos coloca nos passos e nos percalços dos heróis, como então aprender o valor da reverência sem enveredarmos agrilhoados pelos perigosos terrenos da encenação?
Este é o fio inextensível que nos mantém a todos falsamente caídos, suspensos, pêndulos, certos de mil liberdades. Só vivemos quando rodamos, e rondamos, porém, um centro à cuja face nunca levantamos os olhos; divisamos o que parece distante, fora de foco, mas que se trata apenas do chão, tão perto. Pontos da superfície em que mal tocamos são passageiros, como outros tantos pontos que ficam para trás antes que possamos percebê-los em detalhes, pontos cheios de particularidades que tornamos a não notar quando os reencontramos. Não temos certeza se rodamos à esquerda ou à direita, não há ar que toque a face e denuncie a direção a que seguimos. Sonhamos fugas tangenciais, aferimos planos antigos; às vezes dizemos a nós mesmos, Rompemos o fio!, é quando sentimos a resistência do ar e cogitamos ter saído enfim por aquela reta tão necessária; juramos já estar seguindo para longe, quando reabrimos os olhos e nos encontramos de volta, noutro ponto igual da rota pendular. Seguimos sós aos lugares em que estivemos, reaproximamos os velhos atos e ecoamos os gritos das dores daqueles outros que já não abrem a boca.
Aprendemos a temer, não a evitar a tração do desejo.
Desejamos o que tememos pois é só assim que nos sentimos em luta, numa luta que possamos chamar de nossa, que pensamos ser legítima.
Mas de legítima só há a dor que não tememos e não buscamos.
É aquela que rompe o fio quando estamos de olhos abertos.