Pessoal, preparei um vídeo especial. É o book trailer de O deserto dos meus olhos, pois teve início a venda da 2ª edição física do livro! Para receber o seu exemplar em casa, basta entrar em www.leonidris.com (o frete é gratuito para todo o Brasil)! Agradeço ao músico Brice Davoli, pela gentil permissão de uso de sua composição, "Love Stream".
Imagine acordar hoje sem
lembrar que existiu um dia anterior em sua vida. Nenhum nome a dar ao corpo que
se move para fora da cama. Não saber quem são as pessoas nas fotos da mesinha
de cabeceira. Nada resta em sua mente além de algumas palavras vazias de
significado. Você ainda sabe falar, mas não sabe o que falar nem por que
deveria fazê-lo.
Esse é o protagonista da
primeira experiência do cineasta J.J. Abrams na literatura. O S. que temos em mãos é um invólucro para
outro livro, intitulado O Navio de Teseu,
um livro de biblioteca que foi lido e rabiscado por outros dois leitores muito
antes de chegar em nossas mãos. Dentro ainda existem papéis, documentos e
cartões postais trocados entre os leitores. Mas quem são esses leitores? Quem é
o autor, um tal de V.M. Straka? E o protagonista sem memória, o que ele vai
fazer em meio a isso tudo?
Quanto à identidade do
autor, podemos nos juntar à investigação dos dois leitores das margens, Eric e
Jennifer, e buscar pistas, resolver códigos numéricos e linguísticos. Enquanto
nos perdemos nisso, todas as questões são orquestradas e respondidas
secretamente por outras duas mentes ocultas, nomeadas apenas no selo que
rompemos antes de abrir o livro. J.J. Abrams e Doug Dorst.
Emily Berl/NYT
Em mais de uma
entrevista, sempre ao lado de Dorst, Abrams expôs um medo que foi constante durante
a produção deste livro: o risco de tudo parecer apenas um artifício, um truque
do projeto gráfico a ofuscar o vazio de uma história possivelmente pouco
interessante em segundo plano. Pois a ideia teve início assim, de modo
artificioso, sem pretensões de significados maiores além de uma proposta gráfica
inédita… e talvez promissora. O truque, portanto, dependeria de uma história
que valesse a pena ser contada por meio desses artifícios; a dificuldade seria
justificar o projeto gráfico. Abrams não teve pressa, levou mais de uma década
para descobrir o caminho.
Tudo teve início em 1998,
quando ele encontrou no aeroporto de Los Angeles um livro abandonado (The Cry of the Halidon, de Robert
Ludlum), com uma anotação no interior:
Quem
quer que encontre isso, por favor leia e deixe em algum lugar para outra pessoa
encontrar.
Isso bastou para despertar
em Abrams uma ideia que alterava a concepção do que entendemos ser um livro – uma
comunicação entre autor e leitor. Em uma entrevista a CBS em 2013, ele disse
que naquele momento conseguiu ver o livro como “uma embarcação de comunicação
entre dois leitores”. Essa alteração da posição tradicional da leitura parece,
por si só, um ponto de partida de enorme potencial, mas qual seria a essência
do livro lido por essas duas pessoas? É aqui que, em fevereiro de 2009, entra
Doug Dorst, autor de Alive in Necropolis
(ainda sem tradução para o português).
Segundo o próprio J.J.
Abrams, foi Dorst o responsável pela escrita do livro inteiro, com eventuais
reuniões sobre o que estava sendo produzido aqui e acolá, o que de modo algum é
uma novidade para Abrams. O cineasta que muitos aprenderam a idolatrar, criador
das séries Alias, LOST e Fringe e responsável por revitalizar Star Trek e Star
Wars, tem acumulado resultados brilhantes na arte de dividir a produção das histórias
que conta. Sua constante é a imagem final, que parte de uma premissa de
mistério – de se valorizar mais a pergunta do que uma resposta. Mas todas suas melhores
produções compartilham também de uma sábia colaboração na escrita de roteiro.
Embora tenha entrado em Hollywood, no início dos anos 90, ao assinar sozinho
(ainda como Jeffrey Abrams) os roteiros de Eternamente
Jovem, com Mel Gibson, e Uma Segunda
Chance, com Harrison Ford, Abrams encontrou maior sucesso ao dividir a
escrita de projetos como Armageddon e
sua primeira série, Felicity. Foi durante
essas produções que conheceu os frutos da escrita colaborativa com Adam
Horowitz, quem depois foi levado à equipe de LOST – geralmente creditada, e
criticada, apenas como produto da mente de Abrams. Vale lembrar que a série
sobre os sobreviventes do voo 815 na ilha misteriosa teve a influência direta de
Abrams apenas na primeira temporada, quando Damon Lindelof tomou o leme e se
encarregou de guiar a escrita até o fim. Abrams não participou da segunda
temporada pois se comprometeu a dirigir Missão
Impossível III, com Roberto Orci e Alex Kurtzman – dois roteiristas que ele
depois levou a Star Trek (Damon Lindelof também foi chamado ao time para o
roteiro da continuação, Star Trek Into
Darkness).
O que essa teia de nomes
e colaborações recorrentes revela é que o sucesso de Abrams está, acima de
tudo, em colocar-se na posição de maestro. As melhores histórias que ele nos conta,
como é o caso de Star Wars: O Despertar
da Força, são projetos cuja premissa e direção final carregam sua visão,
mas cuja identidade se dissipa em outras mentes. Não por acaso, esse é o valor
maior de S., que reflete sua
colaboração na própria narrativa: a autoria é inescrutável.
O mistério maior de S., à primeira vista, nos parece ser
sobre a identidade de V.M. Straka, o autor fictício criado por Abrams e Dorst,
mas a característica essencial desse mistério esbarra em qualquer identidade
que se deseje encontrar, como a do protagonista ou do próprio leitor, que aqui,
ao lado de Eric e Jennifer, não tem o direito de existir livre para ser um só.
O título O Navio de Teseu, por sua vez, faz
referência direta ao paradoxo proposto pelo historiador e filósofo grego Plutarco,
que problematizou o costume de reformas da embarcação que teria levado Teseu
até Creta, onde venceu o Minotauro. Plutarco conta que a embarcação foi
preservada pelos atenienses por quase mil anos e propôs o desafio de
explicarmos quando é que alguma coisa perde sua essência, quando é que deixa de
ser o que a consideramos ser. Ao longo do suposto milênio, o navio usado por
Teseu teve de passar por inúmeras reformas, sempre perdendo suas partes
originais e sendo reconstruído com partes novas. Então, pergunta-se, ao se
substituir a última parte constituinte do navio original, ele deixaria de ser O
navio de Teseu?
Esse é um problema que
nos inspira – e que naturalmente inspira S.
– a questionar nosso próprio ato de autoria sobre as palavras que usamos para
definir o que definimos. Algo é o que é à medida em que o nomeamos? A
identidade do navio, das coisas e até de nós mesmos, existe à parte de nossas
invenções? Para se responder, positiva ou negativamente, a esse paradoxo
essencialista é necessário um ato de renúncia ou de aceitação. Devemos
renunciar à capacidade de as palavras investigarem mistérios de uma realidade
que elas próprias mal refletem, ou então aceitar que a realidade é tão
inventada quanto o significado das palavras.
Quer saber mais sobre S.
e o Navio de Teseu? Preparei uma resenha em vídeo no meu canal no YouTube:
CURIOSIDADE
Escrevi esse texto no dia
seguinte à morte de Umberto Eco, professor de todos nós amantes dos mistérios
que nascem do uso das letras. Ainda em março deste ano devemos receber um livro
póstumo seu, Pape Satan Aleppe, a ser
publicado pela editora a que Eco se juntou pouco antes de falecer. O nome dela?
La Nave di Teseo.
Se eu soubesse dessa
curiosidade e da triste notícia antes de fazer o vídeo acima, teria
acrescentado o lembrete de que Eco era, entre nossos contemporâneos, o semiólogo
mais determinado a construir sobre as bases de Saussure (citado no vídeo) e
Peirce, a unir supostas diferenças e a ampliar o estudo sobre os símbolos.
Portanto, que esse vídeo sirva também como uma homenagem à área do saber que
Eco tanto amava. E como um convite. Ao nosso constante retorno à linguística e
aos avanços que a escrita de Eco nos trouxe.
As torres de San Gimignano são lembranças das
disputas de famílias antigas. Como crianças sentadas na praia, comparando a
altura dos montes de areia que constroem, os grandes nomes dessa cidadezinha
resolviam atestar a superioridade pela altura que alcançavam. Nenhuma dessas
torres é tão alta quanto os menores prédios da Avenida Paulista, mesmo assim, a maior
delas me aterrorizou.
Chovia. Minha irmã e minha mãe haviam descoberto
uma loja de tecido que fazia bordados em utensílios de cozinha e não saíram
mais de lá. Dali a pouco anoiteceria e eu tinha meus planos de subir
a maior torre da cidade enquanto ainda houvesse luz no céu. Se anoitecesse, eu
perderia a vista da cidade. Resolvi deixá-las para trás e segui à entrada da
Torre.
Talvez pela chuva, pelo dia, talvez pela hora,
ninguém estava no primeiro andar. O primeiro lance de escada dava numa galeria
de relíquias da cidade, também ali nenhuma vivalma. Passada a lojinha de
entrada, também vazia, adquiri meu ticket e segui às catracas. O saguão da
Torre propriamente dita, onde finalmente começaria a subida, revelava a
perpendicularidade que eu enfrentaria: todos os degraus eram vazados, de ferro,
de modo que era possível ver através deles até que altura eu deveria subir. Não
avistei nenhum movimento, nem ouvi sinais de que alguém já estivesse a alguns
lances dali. O silêncio, a princípio, me permitiu apreciar a subida e refletir
sobre o valor milenar que aquele espaço adquirira. Esse é o tipo de
interiorização que geralmente escapa aos espaços disputados por tantos turistas. Se visitar esses espaços em meio a uma
caravana já pode ser especial, imagine quão profunda experiência não seria poder
caminhar sem nenhuma outra pessoa por perto, escutando apenas
os próprios passos e imaginando a origem de cada marca nas pedras.
Venci os primeiros lances. Embora aquela
simples torre não tivesse a importância de um Coliseu, eu imaginei que aquelas
escadas vivessem apinhadas de gente noutros dias não chuvosos de uma alta
temporada. Mas passei a rever minhas ideias quando notei teias de aranha
formadas entre os degraus e os corrimãos. O lance seguinte começou a ranger e me
preocupei pela primeira vez com a idade dos degraus. Nisso, olhei para baixo e
notei através do ferro vazado a altura que já me separava das catracas do
primeiro nível.
Subi mais quatro ou cinco lances e comecei a
ouvir as conversas dos pombos. Ou melhor, o monólogo interior de cada um deles; pois um pombo não espera que o outro termine de falar para só então
respondê-lo. Um interpela o outro, grunhindo, como se a resmungar para
si mesmos aquilo que repudiam do que o outro ainda não terminou de dizer. Em resumo, é uma balbúrdia bastante
semelhante à Câmara dos Deputados (nos dias em que os nossos representantes não
estão se batendo a caminho da máquina de voto, pois pombos não se batem por
questões ideológicas).
Quando pombos se estapeiam geralmente é porque
disputam comida, quando não precisam falar nada e em silêncio, famintos,
entendem que só o contato físico pode resolver o problema.
Dos silêncios humanos também irrompem
discussões terríveis. Quando eu era pequeno, acompanhando minha mãe em um grupo de estudos dela, fiquei na sala de espera, sentado num
sofá diante da divisória de vidro pela qual eu podia avistar o ambiente em que
as pessoas estavam sentadas, em roda. Em algum momento, um casal
se levantou e saiu de dentro da sala. Eles gesticulavam, um para o outro,
exasperados. Gesticulavam sem emitir som algum, embora a boca da mulher e do
homem se movessem em palavras mudas. Ele então passou a falar de verdade. A
mulher continuou a não responder da maneira convencional; apenas gesticulava. Pouco
a pouco, aproximaram-se do sofá em que eu estava e pararam ao centro, sobre um
tapete. Essa sala de espera estava escura, talvez eles não tivessem notado
minha presença. A discussão estava para terminar, não sem antes alcançar um
ponto crítico. Eu era pequeno demais para entender as disfunções sensoriais que
poderiam explicar a estranheza daquela conversa, mas eu entendi melhor o que
acontecia quando a mulher fez barulhos esquisitos. Ela também queria falar, respondê-lo
enfim como ele fazia, com a voz, mas parecia encontrar dor para tirar as
palavras da garganta. O som que ela conseguia fazer era impossível de se traduzir,
mas o homem talvez entendesse, pois ele respondeu gritando alguma coisa que eu
adoraria lembrar. Ela quis gesticular algo mais, mas ele de repente lançou os braços
em sua direção e a jogou no chão, caindo em cima de seu corpo. Eu não consegui chamar
ninguém, estava imobilizado pelo medo da cena. Ela agiu, da única maneira que
poderia agir, encontrando forças para revidar. Começou a esmurrá-lo e puxar seu
cabelo. A partir daí minha memória corta a cena e me vejo no colo de minha mãe.
Alguém separara o casal e eles não estavam mais ali. Minha mãe me contou que eram pai e filha, e que ela era muda.
Soava como se houvesse centenas de pombos a
alguns metros da minha cabeça. Comecei a imaginar o que eu poderia encontrar se
continuasse subindo. Estariam todos reunidos ao redor de onde eu teria de
surgir? Voariam para longe ou para cima de mim? Na hora lembrei-me da cena da
senhora dos pombos do Central Park em Esqueceram de mim 2. Os pombos cobrindo o
corpo da mulher era a cena mais assustadora de todas que eu vira na Sessão da
Tarde. E se esses pombos italianos fossem mais famintos e estressados que os
pombos de NYC?
Mas o andar final não deu ao ar livre, havia
apenas janelas com vista para uma das praças e, no canto esquerdo, um campo de futebol. Notei então uma escada vertical,
descendo de uma espécie de alçapão, aberto, um pequeno quadrado com a luz do fim
de tarde chuvoso que pairava sobre a torre. Alguns pombos voavam ao redor das janelas,
pousando vez ou outra na estreita sobra de pedra. Cogitei a possibilidade
daquela escada não ser para acesso dos turistas, uma vez que estava inclinada
demais e não tocava o chão. Talvez algum funcionário tivesse esquecido de
retirá-la e o andar das janelas fosse o limite da subida para quem quisesse ver
a cidade ali de cima. A vista não era ruim, mas as janelas não eram
grandes, via-se apenas uma pequena parte da cidade e o vidro impedia que o ar
fluísse. Sem ar, sem noção de espaço. Eu havia subido para sentir o espaço da
cidade, queria poder vê-la por inteiro.
Coloquei um pé no primeiro degrau da suposta escada
proibida. Ela balançou, parecia prestes a se soltar. Fiquei olhando-a por algum
tempo, calculando riscos e me acovardando a cada lampejo de decisão; nisso devo
ter levado dois minutos. Ou dez, não posso saber. Quando uma parte nossa
conversa com a outra, o tempo se divide em dois: o tempo da parte que tenta
convencer e o tempo da outra, que, ao argumentar em defesa, distrai ambas da
percepção do tempo. Quem já não experimentou isso enquanto lava uma louça
acumulada? A pia esvazia rapidamente quando temos algo a conversar conosco, especialmente
quando discordamos do que temos a nos dizer.
Subiram vozes dos andares abaixo de mim. Pelo
ferro vazado, avistei a cabeça deles. Era um casal. Postei-me numa das janelas
e comecei a tirar fotos da vista, como quem acaba de chegar ali e não encontra
muita razão para se amedrontar com a escada bamba do alçapão.
Assim que o casal chegou ao meu andar, olhei de relance para os seus rostos, para me
mostrar solícito a cumprimentá-los, mas eles preferiram não olhar na minha
direção. Falaram entre si. Eram portugueses. Fiquei quieto, aproveitando que
não saberiam que eu podia entender o que falavam.
– Podemos continuar subindo? – ele perguntou.
Eles haviam parado diante da escada. A mulher
não respondeu, foi ver a vista da janela. Ele colocou o primeiro pé, segurou
nas laterais da escada e deu um impulso. Ela vacilou de uma forma ainda mais preocupante.
Ele abortou a subida imediatamente.
– Acho que não é seguro – disse para si mesmo,
embora pudesse querer dar à mulher a impressão de que fizera o teste por ela e
estava prevenindo-a da tentativa. – É possível que seja só até este andar.
– Por isso mesmo devem ter colocado as janelas – ela disse.
Eles se afastaram da escada e foram se
contentar com a vista de uma janela.
Ela prosseguiu dizendo que era necessário que
houvesse janelas pois, certamente, em algum momento do passado, pessoas deviam ter
escolhido a torre como ponto de suicídio. Não se precaveram o bastante ao
deixar esta escada solta, disse o homem, concluindo com a opinião de que o suicídio
de turistas era improvável, já que só se pode viajar feliz. A mulher riu por
algum motivo, talvez achando engraçado a proposição de que depressivos não
viajam. Ele reiterou dizendo que quem viaja o mundo deixa as infelicidades em
casa. Eu soube que ele estava completamente errado em achar que a tristeza fica
guardada em alguma gaveta quando fazemos a mala, mas notei que eu sempre fizera
isso. Seja em viagens para cidades vizinhas ou para um país distante. Eu sempre
deixei no meu quarto o que pudesse estar doendo. Todas minhas viagens foram idílicas.
Não havia sensação de que o tempo passava e, olhando para trás, percebo que eu
não realizava que em algum momento teria que partir e voltar.
Fui à escada outra vez e não dei apenas um
passo. Eles se viraram para me olhar imediatamente. Subi dois, três, quatro,
todos os degraus, a escada parecia prestes a se soltar, mas continuei firme,
até sair com a cabeça na garoa.
Eles logo vieram atrás de mim. Foram até uma
beirada do parapeito de pedra e eu à outra. Não havia pombo algum ali. Respirei
o ar puro e frio, satisfeito por ter conseguido subir para sentir o espaço e
enxergar o que eu tanto queria. A cidade sulcava o morro sobre o qual havia
sido construída, de modo que se assemelhava a uma daquelas miniaturas fechadas
dentro de um globinho. O mundo ao redor do globo era muito mais vasto e os
limites da cidade estavam próximos demais. Ela terminava logo depois de começar.
Não faz muito tempo que senti de perto a destruição que é o não lembrar. Eu sempre tive alguma noção
de que somos apenas o que lembramos, que existimos na medida em que formamos e
reformamos uma ideia do que fomos, mas demorei a realizar que também somos o
que os outros lembram de nós. Pois como seria possível se reconhecer naquele piquenique,
se a outra pessoa que esteve lá não está mais aqui? Como ter certeza da própria
infância se as testemunhas se foram e não podem mais confirmar suas fantasias?
Quando se ama alguém por uma vida, nossa própria identidade funda-se na
capacidade da outra pessoa se lembrar de quem fomos, do que dizíamos e fazíamos,
do que desejávamos e repudiávamos. A partir do momento em que o outro se
esquece do que você foi, você deixa de ser aquilo e também deixa de ser isto. O
ego sobrevive a quase tudo, mas uma identidade pode ruir com a mesma facilidade
com que uma criança vai ao chão após os primeiros passos aprendidos. Pois
tudo o que pensamos ser a personalidade e a autoconsciência não passa de um
andar trôpego, que melhor avança quando decide se arrastar e colher fragmentos de uma memória
seletiva e inocente.
Meu maior medo, hoje, é
esquecer de quem eu fui neste instante... que já passou.
_______________________________
O livro mais recente que
li sobre o esquecimento é O Gigante Enterrado, que resenhei para o meu canal
prelúdios no YouTube. Veja aqui:
Encontrei um cílio dentro de um dos livros antigos que
consulto na biblioteca. Ou talvez fosse um pelo de uma sobrancelha. Entre as páginas.
E o assoprei, por impulso. Imediatamente um sentimento de culpa e violação me
tomou e me arrependi sem entender o porquê.
Fui ao chão, metendo-me a procurar por aquela pessoa cujos olhos, sabe-se lá quando, ontem ou décadas atrás, haviam passado pelas palavras que
os meus olhos liam ali há pouco.
Os
ponteiros dos relógios do mundo todo só giram porque nós os obrigamos. Assim como o Sol não passa pelo céu, o tempo não está passando pelos relógios,
nem por nós. O tempo não nos mata.
Não podemos dizer que o tempo está em
movimento, pois o tempo não está aqui nem ali. Tempo
não se obtém, não se possui. Não é possível segurá-lo ou ainda imaginar que ele
está à frente, à toda velocidade. Não se deve antecipar sua passagem nem temer perdê-lo
para sempre. Tempo não se perde, não se acha. Para achá-lo, ele precisaria
estar. Para perdê-lo, ele precisaria ser. Perdemos apenas a nós mesmos, porque somos
e estamos. Nós é que passamos, sem jamais conseguirmos observar o que
está à volta e à frente ou o que fica pra trás, por não sabermos ou não podermos
olhar, talvez por não querermos. É certo que não conseguimos. Nessa nossa
multidão ninguém vê o que vai embora. Estão todos com os olhos dirigidos a um ponto cego e escuro, que se aproxima tristemente rápido. O tempo não corre. Está
parado. Nós é que corremos. Cada vez mais rápido, sem carregarmos nada
além de imagens, sem termos fôlego para crescer como as montanhas
crescem. Carregamos linguagem, que também perde fôlego. À nossa imagem e
semelhança, inventamos qualquer frase, que, por natureza, vence períodos para dirigir-se sempre a um ponto final.
Olá, pessoal! Hoje vou compartilhar três coisas com vocês. Primeiro, um novo conto e, mais abaixo, dois vídeos.
O conto de hoje é intitulado...
Sobre o que nos separa
Desordenaram os trilhos de trem e isso causou um enorme problema – você poderia pensar estar seguindo rumo a Nova Iorque e acabar chegando em Kinshasa, ou rumo a Shangai e encontrar-se perdido em Instambul.
A princípio, o problema pareceu se limitar a uma perda de compromissos em massa, de centenas de milhares de pessoas ao mesmo tempo, o que já seria terrivelmente caótico, mas o agravante era o seguinte: a estranha anomalia não foi um acontecimento momentâneo e ninguém poderia voltar tão facilmente para onde estivera. Todos os trens, de ferrovias e metrôs do mundo todo foram magicamente alterados. Era possível sair de Manhattan e parar, poucos minutos depois na estação Waterloo em Londres, ou na Odéon de Paris. Trens carregados de carvão e cobre desapareciam do Arizona e paravam na Rússia e no Brasil; outros tantos carregados de contêiners com alimentos paravam em trilhos há muito inutilizados na África subsaariana e em meio a casas de cidades pobres no sul da Ásia. Essas cargas eram recebidas com louvor, interpretadas pelas comunidades necessitadas como um intencionado envio humanitário. Mas dessa aleatoriedade, raros destinos eram benéficos. Embora o pior não tivesse ocorrido – por alguma razão, não houve notícia de nem sequer um acidente, nenhum trem colidiu com outro; todos eram desviados numa harmoniosa substituição – por outro lado, em questão de semanas, a economia mundial foi fortemente prejudicada. Nenhum país se sentiu seguro em transportar o que devia. Em todas as metrópoles, aqueles que desejassem ir ao trabalho tinham de evitar o metrô, congestionando então as ruas de uma maneira nunca antes vista. Transportes que assegurassem um destino eram possíveis apenas pelo mar, pelo ar e pelas estradas. Naturalmente, a situação sobrecarregou esses meios e conseguir vagas em voos emergenciais pela Europa tornou-se um pesadelo. O espaço aéreo emaranhava-se perigosamente.
(CONTINUA...)
Esses foram os dois primeiros parágrafos. O conto inteiro está disponível na Amazon! Se você não possui um Kindle e-reader, também conseguirá ler. Basta baixar o aplicativo Kindle para celulares, tablets e computadores (o app também pode ser encontrado pela Play Store do seu Android ou pela App Store do seu iPhone). Depois é só colocar na Busca o título, ou o meu nome.
Passei as últimas semanas sem fazer postagens pois me dediquei a ampliar minha produção de conteúdo para vocês. Decidi estender o espaço desse blog e fazê-lo chegar ao YouTube, ao canal prelúdios. Isso custou mais tempo, principalmente a edição de vídeos (algo que estou aprendendo melhor enquanto faço). Mas continuarei a fazer postagens aqui e já tenho textos preparados para as próximas semanas.
No primeiro vídeo do canal, falo sobre quais leituras me formaram como leitor, desde a infância até a faculdade, falo também sobre o lançamento de O Deserto dos Meus Olhos e respondo a um dos primeiros leitores, o Ronni Anderson. (Se quiserem, deem uma olhada no site dele, tem bastante conteúdo). No segundo vídeo, conto por que, ao contrario do que normalmente se espera, não gostei do livro Perdido em Marte, de Andy Weir, e adorei o filme, agora em cartaz nos cinemas, dirigido por Ridley Scott (Gladiador, Exodus, Alien, Prometheus) e estrelado pelo Matt Damon.
Podem se inscrever no canal, pois pretendo produzir mais para vocês!