Onde está a essência inata de uma criança que foi
privada da relação com o espaço, com a língua e com outras pessoas? Ela seria
capaz de exercer algum poder de criação?
Habitar é nosso primeiro ato, habitamos antes de
nascer, e quando encontramos o mundo exterior do lado de cá do ventre materno,
o espaço é então nossa primeira descoberta. A casa é o que vem muito tempo
depois, inventada. E está em sua arquitetura o mapa da alma que deseja
recolher-se uma vez mais, continuar habitando, para voltar a entender o mundo
por um interior.
A casa, com suas divisões, refúgios, segredos e
fronteiras, é o ambiente que consagra os refúgios do próprio morador.
A beleza de plantarmos uma árvore ao lado da casa e
vermos seu crescimento é um ato que unifica exterior e interior, ato que
aguarda o dia em que essa mesma árvore quebrará a janela por onde nós tantas
vezes nos pusemos a admirá-la. Assim é a nossa relação com o espaço. E, por
isso, por somente assim enxergarmos o tempo, é nele, no espaço, em que
confessamos nossos desejos pela permanência.
Em A poética do espaço (1957), Gaston Bachelard define essa
relação de permanência da seguinte maneira:
"Por vezes acreditamos conhecer-nos
no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da
estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio
passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer "suspender" o voo
do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a
função do espaço."
___________________
Essa é a partida para o vídeo que vai ao ar hoje.
Dando continuidade aos temas dos vídeos anteriores, da imaginação à linguagem,
este explora o lugar do espaço na formação de nossa natureza humana:
Ao fim dele, uma surpresa especial: a leitura do poema
é feita por Tânia Fernandes, minha mãe! E o poema, "Quintanices", é
de Regina Dayeh, de seu belíssimo livro "Meu pai desenhava navios".
Eis a transcrição:
"Segui teu conselho
abri uma janela
palavras
dançam nas ruas estreitas
pelas avenidas
grafitam nos muros
ocupam espaços
correm na areia
entre rios e pontes
entre vagas ideias
as letras as frases
escapam pulando
em cores
na boca
no sangue
na mão
chega o poema
e junto o poeta
e vem o convite,
à festa folia
brincar de poesia
os sons
toda a luz.
arejam a casa
alegram a casa
habitam em mim."
Publicado pela Miró Editorial, em 2013.
Regina Dayeh nasceu no Rio de Janeiro em 1954 e passou a infância e adolescência em Santos. Mudou-se para São Paulo, onde se formou em Direito no Largo de São Francisco, em 1977. Foi professora universitária de Direito Empresarial e é Assessora Jurídica do TRT-SP. Poeta e contista, "Meu pai desenhava navios" é seu primeiro livro de poesia.