quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Carona

Não é raro ver uma formiga carregando um pedacinho de folha e, lá no alto, levemente agarrada à extremidade, outra formiga, pegando carona de volta pra casa. Mas a carona só nos parece ser assim, carona e não outra coisa, porque nós é que entendemos essa ideia de carona. A formiga que vai agarrada, nas alturas, certamente pegou a folha com a mesma intenção, com a mesma responsabilidade operária da outra formiga, que conseguiu se fazer dona temporária da folha que logo mais será de todo o formigueiro. Imagine o problema: talvez tenha ocorrido que, antes dessa formiga que com força carrega folha+carona, a outra, a da carona, já tivesse visto e abocanhado tal bem da natureza. Quem pegou antes, quem pegou depois, não sei, você não sabe, porque é difícil testemunhar o que aconteceu antes de começarmos a olhar; difícil julgar uma briga de seres tão parecidos entre si. E, afinal, quando esses seres se misturam, não é mais possível saber quem é quem; se essa não é aquela, e se aquela não é esta. O fato é que essa tal formiga, que vira e mexe pega carona; talvez ela seja iludida; talvez, por algum tempo, sinta que é ela mesma que carrega a folha, e não a outra. Que outra? A outra se esconde do outro lado da folha! Como vê-la? Como saber? O chão vai ficando pra trás, as pernas da formiga-de-carona se debatem no ar, como se ela mesma pisasse a terra. Quem vai traduzir a verdade e lhe dizer que não, que seus pés não tocam o chão? Talvez ela até saiba. Mas, diante de seus olhos-antenas, a folha fala mais alto, é seu motivo pois é sua. E só sua!
Eis que, de repente, não sei como, essa formiga se dá finalmente conta de que se agarrou na folha que já é da outra. Se voltar assim pra casa, de carona, terá traído sua missão.
– Ah, mas talvez ela não tenha se iludido, formigas se comunicam bem. E sempre concordam umas com as outras. Essa deve ser só mais uma cena da força da natureza em intuitiva disputa consigo mesma. E, lembre-se, “ilusão” é só palavra; como “carona”, é ideia nossa. E se for pra seguir nessa projeção, posso mesmo pensar que ela quis disputar pelo que era sabidamente do outro, e testar forças, resistir. A natureza selvagem, que também há de estar nelas, dormente, ameaçando em segredo sua comunidade perfeitamente equilibrada, essa natureza, selvagem como a nossa, de primatas, não aceitaria perder uma folha tão verdinha.

Bem, ilusão ou disputa, o fato é que, ao contrário de nós, essa formiga então desce da folha-carona – acabei de ver aqui no jardim –  e vai procurar em outra folha seu verdadeiro movimento.




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