Tudo
seria mais fácil se eu me interessasse por menos coisas, se eu tivesse um gosto limitado a gêneros específicos. Isso
vale para a música, para o cinema e para a literatura. Estou sempre aberto a
dar uma chance ao que escuto, ao que vejo e leio. A consequência disso é que gosto das fantasias de Rowling e da Cor da Magia de Terry Pratchettt tanto quanto gosto da desconstrução bíblica de Caim e das inverossímeis Intermitências da Morte. Amo a ficção histórica de Susanna Clarke e venero o ego implodido de Arturo Bandini em seu caminho a Los Angeles; as memórias biográficas de Hitch-22 me fascinam não menos que a detalhada biografia do Universo, de John Gribbin. Quem primeiro me fez chorar diante do papel foi o Casmurro de Machado, o último foi o sonhador Dominic Molise, no inverno mais frio de John Fante.
Quando entro numa livraria, a sensação é desesperadora. Toda e qualquer seção tem pelo menos cinco livros que eu gostaria de ler. Quando saio sem comprar nenhum, sinto que ignorei uma grande parcela de conhecimento imprescindível. Quando saio tendo comprado alguns, trago-os pra casa e eles têm de entrar imediatamente na fila de livros a serem lidos, posicionados sobre as pilhas que já acumulo há anos por falta de uma estante grande em que eu possa guardar todos devidamente. A quantidade que consigo ler por mês é menor do que a quantidade que adquiro nesse mesmo tempo. Seria uma compulsão saudável se o ano inteiro fosse feito de férias. Agravante da falta de tempo para ler é a minha necessidade de dedicar um tempo diário para a escrita, seja acadêmica ou ficcional. Contudo, recentemente, escrevendo um conto chamado Alfred e a Estante, descobri que o desespero que sinto ao entrar numa grande livraria diz respeito não à quantidade exorbitante de livros que ainda devo ler, mas à aparente ausência de vazios. Parece já existir ali tudo o que precisaria ser dito, além de réplicas e tréplicas dos milhares de livros que dialogam com o conteúdo anteriormente lido por seus autores. Com um pouco de suspensão do ego, qualquer um pode acabar acreditando que não há lacuna nas estantes. O vazio, porém, é onde a mente opera, uma ausência na estante é o que ventila a reflexão.
Jorge Luis Borges |
Ao pisar numa Livraria Cultura como a do
Conjunto Nacional, em São Paulo, rodeia a minha cabeça a mesma sensação angustiante que A
Biblioteca de Babel de Borges me proporcionou. Avisto cada seção de estantes e imagino um mundo incongruente de argumentos distintos, regidos por individualidades autorais conflituosas. Uma multidão de músicos a tocarem partituras diferentes.
A
sinfonia desorquestrada de dizeres pode enlouquecer quando inocentemente se
imagina haver um meio de ouvir a todos, de ordená-los na memória e conduzi-los com a
batuta que é o lápis. Pois é com ele que se harmoniza a gritaria das estantes, com ele que se esquece do vertiginoso infinito de vozes.
Muitos dão conta das duas tarefas, a de reger e a de compor dizeres.
São os chamados polímatas; indivíduos que estudam ou que conhecem muitas
ciências. Umberto Eco, em um debate com a escritora Susan Sontag, assumiu que
essa era a sua maior ambição, tornar-se um polímata. É evidente que ele parece
chegar muito próximo disso, assim como o próprio Borges.
Umberto Eco entre parte de sua coleção de mais de 50 mil livros |
Borges,
porém, venerava o conceito de infinito e via a poesia como mantenedora de uma
distância fundamental entre os saberes concretos e os saberes da palavra
imaginada pela arte. Contrário a isso, um polímata só é pleno em seus anseios
ao entender o saber como finito, abarcável. A palavra polymathia teria
sido usada por Heráclito para criticar a natureza superficial de se abraçar
mais do que se pode alcançar. Semelhante foi a resposta de Sontag naquele
debate com Eco: ela o lembrou que o polímata é quem se interessa por tudo e por
nada mais. Um apaixonado pelas paisagens, cego por tudo que tenta enxergar
ao mesmo tempo.
Esse nada mais é, para mim, o que me permite a inocência de compor longe da
gritaria. É um vazio na estante, abrindo espaço para os sopros que precisam
correr daqui pra lá.
Quando a estante está completa, o homem está preso nela.
Inspirado
nisso, nasceu Alfred e a Estante. É um conto longo para o blog (pouco mais de 4 mil palavras), e por isso
trago aqui apenas uma parte, que espero servir para despertar o desejo de continuarem a
leitura:
__________________________
Olho, de M. C. Escher
|
Alfred e a Estante
Por
muito tempo eu sonhei com uma estante grande o suficiente para guardar todos os
livros que adquiri ao longo de mais de vinte anos de leitura e pesquisas
acadêmicas. No auge da minha compulsão, quando havia tempo de sobra, eu
costumava ler um livro a cada dois dias. Grande parte dessa leitura se deve ao
fato de que cursei Letras. Conquistei meu mestrado há um ano e agora estou
desenvolvendo um projeto de doutorado centrado nas formas de representação do
infinito. A ideia é colher respostas em Murakami e Kafka, tirando proveito
também de análises sobre algumas imagens de Escher – o que minha orientadora
acredita ser impossível conciliar com análises literárias. A pesquisa parte da
hipótese de que o infinito é uma invenção humana, um atalho inconclusivo
figurado pelo cérebro para findar a sua incapacidade de compreender grandes e
ínfimas extensões temporais e espaciais. Eu poderia divagar sobre o que venho
pensando para essa tese, afinal, como todo pesquisador, tenho um vício
incurável por falar e falar sem chegar logo ao que quero dizer, então ficarei
calado quanto a isso. Resolvi escrever-lhe por razões mais importantes. E, para
ser sincero, o que farei ou não sobre a hipótese da tese… nem eu ainda sei
dizer direito. A ideia nasceu de um instante imaginativo há alguns anos, quando
li Sono, um conto de Murakami, e me
senti orbitando uma única imagem durante toda a leitura. O conflito da
personagem que torna-se permanentemente incapaz de dormir fez-me lembrar da
gravura intitulada “Olho”, de Escher. Dali ao fim da leitura, não consegui mais
deixar de ver aquele olho em cada palavra. Desde então, sempre ao ler as
palavras do escritor japonês, lembro-me de outras gravuras de Escher. O fato é
que precisei contar isso tudo por causa da minha nova estante. Com ela ocupei
uma parede inteira do meu escritório, de modo que o transformei na minha
biblioteca particular, cuja única parede livre, em frente à estante, adornei
com uma enorme tela do Olho de Escher.
Antes
dessa estante, eu poderia olhar para qualquer direção e encontrar pilhas de
livros espalhados por toda a casa, dentro da sapateira, debaixo da cama, ocupando
gavetas e disputando a tarefa de decoração com objetos da sala – pois em um
canto eu empilhara uns tantos livros de tal modo que, atingindo sinuosas
alturas, pareciam três estalagmites de papel criadas pela artista espanhola
Alicia Martin em um de seus dias mais sóbrios. Pela casa eu imaginava ter uma soma
aproximada de mais de mil livros. Quando precisei saber a medida das
prateleiras, contei um por um e descobri serem quatrocentos e dezessete. Para
ordená-los, separei-os por tema, pois percebi que se os arrumasse por ordem
alfabética de autores forçaria parcerias no mínimo irônicas. Não me pareceu
correto misturar línguas distintas, nem colocar Murakami ao lado de Maomé. Como
em qualquer biblioteca, utilizei uma prateleira para dispor apenas livros de
religião, outras para ciência, literatura e assim por diante.
Na
noite em que guardei todos os livros, sentei-me orgulhoso no sofá diante da estante
e dediquei uma taça de vinho à ordem que eu finalmente conseguira dar a tudo.
Ainda estava fresca na memória a disposição de cada uma das prateleiras quando,
no dia seguinte, voltei à biblioteca para admirar os livros e dei-me conta de
um vazio na terceira prateleira, de baixo para cima, ao centro da estante, onde
eu havia enfileirado apenas os livros que eu ainda não lera. Eu tinha plena certeza
de que não restara nenhum espaço ali na noite anterior, muito menos uma lacuna
de três ou quatro centímetros que agora separava O Muro de A Imaginação,
este último pendendo para a esquerda, apoiado no outro. Não me lembrava de ter
retirado nenhum dali para uma leitura antes de dormir, mas mesmo assim comecei
a procurá-lo. Nada havia dentro das caixas que eu usara para transportá-los, nem
em meu quarto, ou no banheiro, tampouco na sapateira ou debaixo da cama. Fui
inspecionar também o andar debaixo, embora eu não tivesse descido depois que
fui buscar o vinho. Nada na sala e na cozinha.
Estava
faminto, então tive de parar e dar vez ao café da manhã. Eu haveria de me lembrar
onde pusera o livro depois de aquietar o estômago.
Enquanto
comia o cereal com as frutas vermelhas de todas as manhãs, tive a impressão de
que havia sonhado algo importante, mas não conseguia resgatar nenhuma imagem;
sentia apenas que envolvera amigos de faculdade que eu não via há muito tempo.
Fui andando para os fundos, ainda comendo, e abri a porta para o quintal, onde
pus-me sob o sol, dando colheradas, aquecendo o corpo e conferindo as poucas
plantas do canteiro que eu chamava de meu jardim. Pousei a tigela do cereal num
canto e reguei as plantas. Foi quando, não sei ao certo por onde, ele veio. O
gato siamês que eu suspeitava ser de algum vizinho.
Cumprimentei-o,
mas ele só quis saber de dirigir-se até a tigela, onde ainda restava um pouco
de leite. Ele invadia minha casa religiosamente, nunca em outro horário que não
aquele, esgueirava-se pelos vasos de plantas e ia deitar-se majestoso sobre as
placas de ardósia que eu comprara para uma reforma no quintal, que acabara
nunca realizando. Antes de se deitar, ele chegou à tigela, pareceu cheirá-la
para beber, mas, desgostoso, o que fez foi dar um tapa preciso, de baixo para
cima, fazendo a tigela virar e derramar o leite. Satisfeito com a sujeira,
deitou-se na ardósia e começou o transe absoluto que era olhar para mim. Fitava-me
cheio de argumentos sobre algum tópico que eu adoraria saber qual era, pois,
como de costume, tamanha era a reprovação em seu olhar que só me restava
concluir que ele tinha muitas razões para me julgar e, mais do que isso, que eu
haveria de me envergonhar e tomar conhecimento imediato de uma falha minha,
acatando seu julgamento sem relutar. No entanto, nessa manhã, seu olhar crítico
não durou muito, parecia ansioso, preocupado em resolver alguma questão que era
tanto minha quanto sua; balançava o rabo não cadenciadamente, mas em arroubos
inadvertidos, como se lutasse com os segundos até o momento em que não
aguentaria mais o silêncio e me diria aquilo que eu precisava ouvir.
“Bom
dia para você também, Alfred.”
Eu
lhe dera esse nome e ele sempre aparentou gostar, miando ao ouví-lo, mas dessa
vez permaneceu quieto.
“Alfred?”
Nada. “Bem, hoje eu gostaria de lhe pedir que fosse mais direto ao assunto.
Quero usar meu primeiro dia de folga para alguma coisa mais prazerosa do que
ser medido por suas ortodoxias.”
Eu
puxei uma cadeira e me sentei bem em frente a ele. Ficamos alguns minutos nos
observando, até eu perceber que podia fazer algo na sua companhia. Fui buscar
meu caderno na sala e anotei ali algumas ideias sobre minha linha de raciocínio
para a tese. Eu não havia escrito muito, quando Alfred miou baixinho.
“Não
estou te ignorando. Peguei isso aqui justamente para anotar tudo o que você
tiver pra hoje”. Ele gostou dessa ideia, pois mexeu o rabo com calma e se
ajeitou mais confortavelmente na ardósia, como se dissesse: “Pois comecemos. O
que precisa ficar bem claro, de uma vez por todas, é o seguinte…”
Mas
é claro que não falou nada. Ele não seria capaz de começar uma frase indo tão
direto ao ponto. Embora lacônico, sua oratória haveria de ser tão verbosa quanto
os rascunhos de textos acadêmicos e literários que eu frequentemente lia para
ele, e que certamente o influenciavam.
Então,
de repente, lembrei-me que antes de tudo aquilo eu estava procurando pelo livro
que sumira da estante. Voltei pra dentro de casa.
Comecei a cogitar a possibilidade de ter me enganado em achar que a prateleira ficara cheia. Decidi contar todos os livros da estante. Contei duas vezes. Eram quatrocentos e dezesseis. Um a menos.
Agachei-me
para arrumar os livros e, como se ao me aproximar do problema eu pudesse
entendê-lo melhor, olhei entre eles, onde o bendito estivera até a noite
anterior. Caí para trás, tamanho o susto que levei. Recoloquei-me de cócoras e
tornei a olhar o vão, para ter certeza de que vira o que vi.
Continua...
Essas foram as primeiras 1370 palavras. Gostaram da leitura? Adquiram o conto completo no link abaixo:
Alfred e a Estante (conto completo, disponível na Amazon)
http://www.amazon.com.br/Alfred-Estante-Leon-Idris-Azevedo-ebook/dp/B012YMXQCU
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Consigo ver Alfred, posso imaginar a estante, sinto o gosto do cereal e das frutas. Isso faz o bom escritor, nos permite interagir com sua obra.
ResponderExcluirTrabalho primoroso de pesquisa e estudo. Tanto conhecimento compartilhado e tanta coisa interessante a dizer. Prazer de ler voce, aprender e descobrir. Adoro as imagens tambem, como enriquecem e ilustram tao bem. Lindo, lindo! Sublime!
Você é minha referência de conhecimento e bom gosto. Quando sei que te agrado, é uma das provas de que eu preciso pra continuar! Muito obrigado pela palavras! <3
ExcluirÉ mágica a forma com a qual sua palavras me tocam, me fazem pensar, imaginar... É como disse hoje mais cedo, começo a ler o que você escreve e tudo para ao meu redor, sou eu e você. Só eu e suas palavras. Obrigada. <3
ResponderExcluirMuito obrigado, Fer! É bom demais ter esse feedback
ExcluirEstou encantada com o seu texto, e me identifiquei na parte da compulsao pela leitura.
ResponderExcluirSinto muita falta dos livros aqui na Irlanda, logico que aqui tem muitas biblioctecas e um pais com uma cultura muito rica principalmente na literatura, mas Meu ingles e pobre para ler um bom livro , entao sinto falta de um livro em portugues , Isso que eu quiz dizer , mas voce pode pensar: "existem os livros virtuais"
Mas quem e apaixonado por livros quer toca-Los , cheirar , ver a capa e as cores .
Eu achava que EU tinha algum problema porque quando comeco ler um livro EU Quero chegar ate o fim e tenho dificuldade de parar de ler, mas como voce disse a vida NAO e feita de ferias.
Voce acredita que eu trouxe alguns livros do brasil na Minha mala? Eu deixei muitas coisas para traz e geralmente as pessoas se preocupam com o peso da mala e no que podera levar e eu trouxe alguns livros :-)
Mas eu nao sou intelectual, sou apenas uma amadora que gosta de ler, escrever e falar .
O primeiro conto que EU amei na Minha vida foi : A cartomante - Machado de Assis.
Ja estou aguardando o seu proximo texto.
Gratidao
Muito obrigado pela leitura e pelas belas palavras, Dulcineia! Fico feliz em saber que você também tem essa paixão pelos livros. É realmente algo muito mágico. Como você, eu não veria como viajar para fora do Brasil e não levar meus livros comigo na mala, fosse o peso que fosse!
ExcluirE a gratidão também é minha, por ter sua companhia aqui no blog! Até o próximo post!