Imagine acordar hoje sem
lembrar que existiu um dia anterior em sua vida. Nenhum nome a dar ao corpo que
se move para fora da cama. Não saber quem são as pessoas nas fotos da mesinha
de cabeceira. Nada resta em sua mente além de algumas palavras vazias de
significado. Você ainda sabe falar, mas não sabe o que falar nem por que
deveria fazê-lo.
Esse é o protagonista da
primeira experiência do cineasta J.J. Abrams na literatura. O S. que temos em mãos é um invólucro para
outro livro, intitulado O Navio de Teseu,
um livro de biblioteca que foi lido e rabiscado por outros dois leitores muito
antes de chegar em nossas mãos. Dentro ainda existem papéis, documentos e
cartões postais trocados entre os leitores. Mas quem são esses leitores? Quem é
o autor, um tal de V.M. Straka? E o protagonista sem memória, o que ele vai
fazer em meio a isso tudo?
Quanto à identidade do
autor, podemos nos juntar à investigação dos dois leitores das margens, Eric e
Jennifer, e buscar pistas, resolver códigos numéricos e linguísticos. Enquanto
nos perdemos nisso, todas as questões são orquestradas e respondidas
secretamente por outras duas mentes ocultas, nomeadas apenas no selo que
rompemos antes de abrir o livro. J.J. Abrams e Doug Dorst.
Emily Berl/NYT |
Tudo teve início em 1998,
quando ele encontrou no aeroporto de Los Angeles um livro abandonado (The Cry of the Halidon, de Robert
Ludlum), com uma anotação no interior:
Quem
quer que encontre isso, por favor leia e deixe em algum lugar para outra pessoa
encontrar.
Isso bastou para despertar
em Abrams uma ideia que alterava a concepção do que entendemos ser um livro – uma
comunicação entre autor e leitor. Em uma entrevista a CBS em 2013, ele disse
que naquele momento conseguiu ver o livro como “uma embarcação de comunicação
entre dois leitores”. Essa alteração da posição tradicional da leitura parece,
por si só, um ponto de partida de enorme potencial, mas qual seria a essência
do livro lido por essas duas pessoas? É aqui que, em fevereiro de 2009, entra
Doug Dorst, autor de Alive in Necropolis
(ainda sem tradução para o português).
Segundo o próprio J.J.
Abrams, foi Dorst o responsável pela escrita do livro inteiro, com eventuais
reuniões sobre o que estava sendo produzido aqui e acolá, o que de modo algum é
uma novidade para Abrams. O cineasta que muitos aprenderam a idolatrar, criador
das séries Alias, LOST e Fringe e responsável por revitalizar Star Trek e Star
Wars, tem acumulado resultados brilhantes na arte de dividir a produção das histórias
que conta. Sua constante é a imagem final, que parte de uma premissa de
mistério – de se valorizar mais a pergunta do que uma resposta. Mas todas suas melhores
produções compartilham também de uma sábia colaboração na escrita de roteiro.
Embora tenha entrado em Hollywood, no início dos anos 90, ao assinar sozinho
(ainda como Jeffrey Abrams) os roteiros de Eternamente
Jovem, com Mel Gibson, e Uma Segunda
Chance, com Harrison Ford, Abrams encontrou maior sucesso ao dividir a
escrita de projetos como Armageddon e
sua primeira série, Felicity. Foi durante
essas produções que conheceu os frutos da escrita colaborativa com Adam
Horowitz, quem depois foi levado à equipe de LOST – geralmente creditada, e
criticada, apenas como produto da mente de Abrams. Vale lembrar que a série
sobre os sobreviventes do voo 815 na ilha misteriosa teve a influência direta de
Abrams apenas na primeira temporada, quando Damon Lindelof tomou o leme e se
encarregou de guiar a escrita até o fim. Abrams não participou da segunda
temporada pois se comprometeu a dirigir Missão
Impossível III, com Roberto Orci e Alex Kurtzman – dois roteiristas que ele
depois levou a Star Trek (Damon Lindelof também foi chamado ao time para o
roteiro da continuação, Star Trek Into
Darkness).
O que essa teia de nomes
e colaborações recorrentes revela é que o sucesso de Abrams está, acima de
tudo, em colocar-se na posição de maestro. As melhores histórias que ele nos conta,
como é o caso de Star Wars: O Despertar
da Força, são projetos cuja premissa e direção final carregam sua visão,
mas cuja identidade se dissipa em outras mentes. Não por acaso, esse é o valor
maior de S., que reflete sua
colaboração na própria narrativa: a autoria é inescrutável.
O mistério maior de S., à primeira vista, nos parece ser
sobre a identidade de V.M. Straka, o autor fictício criado por Abrams e Dorst,
mas a característica essencial desse mistério esbarra em qualquer identidade
que se deseje encontrar, como a do protagonista ou do próprio leitor, que aqui,
ao lado de Eric e Jennifer, não tem o direito de existir livre para ser um só.
O título O Navio de Teseu, por sua vez, faz
referência direta ao paradoxo proposto pelo historiador e filósofo grego Plutarco,
que problematizou o costume de reformas da embarcação que teria levado Teseu
até Creta, onde venceu o Minotauro. Plutarco conta que a embarcação foi
preservada pelos atenienses por quase mil anos e propôs o desafio de
explicarmos quando é que alguma coisa perde sua essência, quando é que deixa de
ser o que a consideramos ser. Ao longo do suposto milênio, o navio usado por
Teseu teve de passar por inúmeras reformas, sempre perdendo suas partes
originais e sendo reconstruído com partes novas. Então, pergunta-se, ao se
substituir a última parte constituinte do navio original, ele deixaria de ser O
navio de Teseu?
Esse é um problema que
nos inspira – e que naturalmente inspira S.
– a questionar nosso próprio ato de autoria sobre as palavras que usamos para
definir o que definimos. Algo é o que é à medida em que o nomeamos? A
identidade do navio, das coisas e até de nós mesmos, existe à parte de nossas
invenções? Para se responder, positiva ou negativamente, a esse paradoxo
essencialista é necessário um ato de renúncia ou de aceitação. Devemos
renunciar à capacidade de as palavras investigarem mistérios de uma realidade
que elas próprias mal refletem, ou então aceitar que a realidade é tão
inventada quanto o significado das palavras.
Quer saber mais sobre S.
e o Navio de Teseu? Preparei uma resenha em vídeo no meu canal no YouTube:
CURIOSIDADE
Escrevi esse texto no dia
seguinte à morte de Umberto Eco, professor de todos nós amantes dos mistérios
que nascem do uso das letras. Ainda em março deste ano devemos receber um livro
póstumo seu, Pape Satan Aleppe, a ser
publicado pela editora a que Eco se juntou pouco antes de falecer. O nome dela?
La Nave di Teseo.
Se eu soubesse dessa
curiosidade e da triste notícia antes de fazer o vídeo acima, teria
acrescentado o lembrete de que Eco era, entre nossos contemporâneos, o semiólogo
mais determinado a construir sobre as bases de Saussure (citado no vídeo) e
Peirce, a unir supostas diferenças e a ampliar o estudo sobre os símbolos.
Portanto, que esse vídeo sirva também como uma homenagem à área do saber que
Eco tanto amava. E como um convite. Ao nosso constante retorno à linguística e
aos avanços que a escrita de Eco nos trouxe.
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