quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O espaço nos fala

Onde está a essência inata de uma criança que foi privada da relação com o espaço, com a língua e com outras pessoas? Ela seria capaz de exercer algum poder de criação?

Habitar é nosso primeiro ato, habitamos antes de nascer, e quando encontramos o mundo exterior do lado de cá do ventre materno, o espaço é então nossa primeira descoberta. A casa é o que vem muito tempo depois, inventada. E está em sua arquitetura o mapa da alma que deseja recolher-se uma vez mais, continuar habitando, para voltar a entender o mundo por um interior.

A casa, com suas divisões, refúgios, segredos e fronteiras, é o ambiente que consagra os refúgios do próprio morador.

A beleza de plantarmos uma árvore ao lado da casa e vermos seu crescimento é um ato que unifica exterior e interior, ato que aguarda o dia em que essa mesma árvore quebrará a janela por onde nós tantas vezes nos pusemos a admirá-la. Assim é a nossa relação com o espaço. E, por isso, por somente assim enxergarmos o tempo, é nele, no espaço, em que confessamos nossos desejos pela permanência.

Em A poética do espaço (1957), Gaston Bachelard define essa relação de permanência da seguinte maneira:



"Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer "suspender" o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço."

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Essa é a partida para o vídeo que vai ao ar hoje. Dando continuidade aos temas dos vídeos anteriores, da imaginação à linguagem, este explora o lugar do espaço na formação de nossa natureza humana:




Ao fim dele, uma surpresa especial: a leitura do poema é feita por Tânia Fernandes, minha mãe! E o poema, "Quintanices", é de Regina Dayeh, de seu belíssimo livro "Meu pai desenhava navios". Eis a transcrição:

"Segui teu conselho
abri uma janela

palavras

dançam nas ruas estreitas
pelas avenidas
grafitam nos muros
ocupam espaços
correm na areia

entre rios e pontes
entre vagas ideias
as letras as frases
escapam pulando
em cores

na boca
no sangue
na mão

chega o poema
e junto o poeta
e vem o convite,
à festa folia
brincar de poesia
os sons
toda a luz.
arejam a casa
alegram a casa

habitam em mim."


Publicado pela Miró Editorial, em 2013.

Regina Dayeh nasceu no Rio de Janeiro em 1954 e passou a infância e adolescência em Santos. Mudou-se para São Paulo, onde se formou em Direito no Largo de São Francisco, em 1977. Foi professora universitária de Direito Empresarial e é Assessora Jurídica do TRT-SP. Poeta e contista, "Meu pai desenhava navios" é seu primeiro livro de poesia.

Um comentário:

  1. Oi Leon! Ontem eu e meu pai estávamos conversando. Ele está lendo Mulheres de Cabul, de Harriet Logan, e se / me perguntou como que pode algumas das crianças aceitarem o regime do Talibã. Elas o "protegem", dizem que assim está bom. Aí me lembrei desse seu vídeo! Até comentei (e acabei de compartilhar) com ele sobre ter o conhecimento somente daquele meio em que se vive.
    Já disse lá no seu canal, mas repito: esse vídeo ficou sensacional.
    Inclusive acabei de gastar uma graninha aí com livros que você indicou haha
    Beijão!

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